sábado, 4 de outubro de 2014

MÁSCARAS | Vídeo & ensaio fotográfico




Uma manhã em Sidney fui visitar a livraria de um museu e ali me encontrou um livro com reproduções de máscaras tribais daquela região do planeta, em especial Austrália e Nova Zelândia. A ideia de que algo se modifique ao ponto de que o mistério de sua existência não se deixe deformar em essência me pareceu o começo de um bom diálogo com aquelas máscaras que eram a visível ocultação de uma vida, porém ao mesmo tempo me sugeriam a entrada em um bastidor que me mostraria de quem se tratava cada figura, desde que eu identificasse seu esconderijo. De volta à casa de minha filha, no extenso trajeto do ônibus eu refletia sobre o que seria um símbolo de derivação. Recordei então um livro precioso de minha adolescência, O ramo de ouro. As máscaras sugerem transformações, porém apontam na direção de uma ambiguidade. Não são o que são, mas antes o que esperamos delas. Não exprimem conversão, mas sim a identificação com um outro modo de ser. As máscaras são uma pedra de libertação. Guardei comigo por décadas a ideia que James Frazer havia anotado acerca das máscaras na Oceania. Elas nos limpam a alma. No dia seguinte fiz fotos de rosto de minha mulher, minha filha e minha neta. Uma abundância de esgares que deveriam contrastar com a imobilidade de máscaras ritualísticas que a partir daquele momento comecei a fotografar em vários lugares. Um encontro entre dois tempos: o da concepção de uma máscara como a transfiguração de um rosto à qual ela se aplica e a teatralização de um significado que expressa a mística de sua recepção. Tinha comigo um primeiro estoque de máscaras e rostos e fui recordando leituras, viagens e outras formas de visitação. No voo de volta ao Brasil eu matutava acerca da mitologia e suas máscaras. Personagens como Circe e Medusa são o disparador de uma expansão insaciável de imagens. Uma tem por tática a transfiguração. A outra, a imobilidade. O mundo foi ficando seco em seus atributos mitológicos. Uma parte se atem a eles como um código inquestionável que necessita uma guarda permanente. A outra parte não é menos vítima, recolhe as sobras, intui o desgaste, vai vivendo. Haverá então uma máscara por detrás da máscara? Uma essência dentro de outra? Isto resulta indagar acerca da morada do homem. Quando regressei ao Brasil eu fui buscar rostos que falassem comigo. E os diversos olhares sobre uma máscara que até então eu vinha anotando em meu espírito me levaram a buscar outras fontes mitológicas.

Foram quase duas mil máscaras fotografadas. Museus, aldeias, coleções particulares. Viagens por uns 20 países. O exagero na formação de um acervo delas contrapunha-se à economia (ou precisão) na escolha do rosto certo das sete modelos encontradas. A essas mulheres eu dedicaria a mágica de sondar outros perfis do mistério. E foram elas que definiram o tempo de trabalho, desde o primeiro olhar, fotografado em Sidney, até o encontro final com um rosto na Lagoa do Bonfim, nordeste brasileiro. Em todos eles eu busquei um metal e fui surpreendido com outra joia. O metal definia-se por uma mescla de coloração e formato do rosto. A joia se apresentou na forma de um teatro, a variação estonteante de feições que a câmara capturou. O risco convertido em dádiva. A vida é de uma imperfeição feliz.
Ao aventurar-me por diversos lugares eu tinha em mente que o regresso à mesa de edição exigia que todas as pistas fossem apagadas: máscaras mortuárias, máscaras emblemáticas ligadas às religiões e à cultura de massas, eu deveria inseri-las em meus rostos de modo a sugerir uma distinta forma de impacto. O símbolo não é mais uma sinalização do mistério ou de identificação ritualística. Ele se projeta por imposição de meios. Não é mais associado ao acaso ou à corrente afetiva entre os seres. Seu grau de influência - melhor diria interferência - é definido pelo mercado. A minha ideia então se ocupava de uma restauração do mito em seu estado natural. Ao mudar uma pedra de lugar descobrimos que as formas não existem em estado puro. Uma mudança de ângulo será suficiente para deslocar a compreensão do mundo. As repetições de estratégias que garantem manutenção de poder são orientadas por essa mesma perspectiva. Temos uma compreensão elíptica da história. Máscaras formam ou deformam o mito?

O homem não é consciente da extensão de sua queda pela simples razão de que não se distancia de seu pendão cotidiano, jamais compreende a si mesmo como parte de algo. Diante do espelho fantasia uma existência devotada a driblar analogias. Uma operação secreta de deslocamento de conjugações verbais. O que foi, o que é, o que será. A configuração de um mundo pronominalmente desacreditado. Eu nunca nada. Tu nem pensar. Nós jamais existimos. Eles constituem o martelo da paranoia. Até mesmo os diabos menores se divertem com as imagens arrematadas em leilão. O verbo se cansa. Até mesmo as sombras se desgastam. O mito não depende de si.
Os sete rostos que fotografei me ensinaram a descascar o visível até que um outro mundo deixasse entrever seus anagramas. Não importa o que sentimos em relação ao outro. Trazemos dentro de nós veneno e antídoto. Sete mulheres me olharam diante de uma Canon e me surpreenderam pelo desprendimento de seu espírito. Quando fotografei as máscaras elas mesmas me diziam com quais rostos queriam dialogar. Eu me entreguei a um mundo de cada vez, buscando uma configuração distinta para cada mito, uma atualização de cenário e bastidor, a recuperação de uma sinceridade cênica. Um dia precisaremos saber até onde estamos dispostos a ir.

O olhar define a arte de um modo enganoso. Quando passamos de uma escala do mistério para outra, da pintura para a música, compreendemos algo distinto. O mundo deixa de ser o que vemos e passa a ser o que ouvimos. O sentido não define a arte. Tampouco é definido por ela. O caráter inquieto e criativo de cada um de nós é o que ordena a rota alusiva de nossa existência. Um estado permanente de correspondência entre o que imagino ser e o que me falta. A forma não existe senão como uma impureza do ser. É o que expurgo de mim, o gráfico de uma libertação. O cenário cósmico dos símbolos integra ansiedades, afinidades, com uma força anímica que muitos não dão por sua atuação. A máscara é um gráfico. Não convidamos o mito a fazer parte de nossa vida. Não expressa uma realidade em si, mas antes uma rede de conexões que nos permite definir ou corrigir o modelo apresentado. A máscara é um desafio para que o símbolo configure nova essência. Uma manifestação da inquietude do ser.

[2014]




terça-feira, 23 de setembro de 2014

ABISMO MINUCIOSO | Um experimento poético




ABISMO MINUCIOSO | Um experimento poético
Vídeo com Floriano Martins
Participações especiais: Valdir Rocha e Celso de Alencar
Direção e edição: Pipol
TV Cronópios | São Paulo, setembro de 2014





quarta-feira, 10 de setembro de 2014

PARÓDIA DO CADAFALSO | Estudos de pele



Como se fossem nomes, mas sem uma língua, sobrepostos.
Em todos os sentidos escrevendo a escrita na parede
como pedras inscritas na pedra: tempos sobre tempos.

Manuel Gusmão

1

Toda a criação está feita de equívocos, exageros, precárias aproximações da realidade, falsas suspeitas. Acaso haverá algum instinto infalível? Débil o demiurgo a inclinar-se sobre o detalhe de provas de verossimilhança de suas imagens. Os melhores poemas, no melhor dos casos, são apenas poemas. Por mais que se mova - e por vezes algo se move -, a natureza humana aproxima-se de uma pauta maçante de seres inanimados. Talvez tenhamos que considerar a possibilidade de uma era em que não criaremos mais nada. Nos despossuímos tanto do surpreendente que toda a existência já se sente convertida em mera fatalidade. Tal suspensão do maravilhoso erradica sensibilidade indispensável para cometer equívocos e exageros. O mundo liquida-se por certo e infalível. De que povoaremos então as próximas ilusões? A arte nunca tratou de outra coisa. Conviverá acaso com fantasmas que tenham alguma tendência ao previsível?

O homem já se chamou eu, nós, nenhum. Perdeu-se entre si e os demais. Julgou sempre o outro. Qual nome terá agora? Um tamanho desapego moral requer nomenclatura específica. Ainda não é o momento. O mundo se torna tão razoável que logo será possível imaginá-lo. Haverá ainda alguém que indague sobre a substância do que se diz? Triste fim o dos biógrafos. Os visitantes acidentais dirão dessa terra devastada que não lhes provocou sequer uma profunda melancolia. Está perfeito que não se possa simplificar mais nada. Esta é uma lição que nos ensina a natureza ao perder sua criatura deliciosa? Não sejamos tão cínicos. Regurgitemos espadas e chumaços de cabelos. E sobre o horizonte uma elipse emburrada negando a compreensão dos artifícios. Mar de tumbas, brilhantes vozes invisíveis, tudo isso se foi, não ficou uma única metáfora sobre a terra. Os poetas agora estão felizes. Abolida a sucessão de tempo e espaço, por ali foram também descontinuidades e diferenças. A arte quando muito pintará a si mesma: uma natureza morta.

2

Lendo The devil: a mask without a face, de Luther Link, encontro-me com uma simpática observação, a de que “às vezes a fonte de uma obra é a própria obra”. A idéia de interpretação está ligada à de indução e presságio. O sopro de uma delas pode tornar crível a criação, mas não a desata no sentido de influir no desentranhar-se da mesma.

Quando escrevo sobre um corpo morto encontrado na escada do prédio onde mora um amigo, não importa se este corpo corresponde à realidade de meu encontro com ele. O que vemos em sonho ou no palco é tão parte de nossa vida quanto o que nos anima na própria carne. Imaginemos de outra maneira a colocação de Luther Link: às vezes a fonte do que sou é o que realmente sou.

Aceita essa aparente perversão, indago acerca do corpo específico da criação, tratemos do poema ou do próprio homem, sendo ele obra de Deus ou não. O corpo leva em si uma queda de conceitos. Religiões, políticas, filosofias buscam lhe fixar uma ordem, através da qual ele é apenas um meio e jamais o fim.

A transcendência é a única tábua de lei de qualquer manifestação humana? O assombro vincula-se a uma idéia de rejeição, onde estranhar é negar. Se acreditarmos que a obra é incurável, dada a perspectiva de uma relação intrínseca com o criador, o que esperar do homem que está sempre a buscar obsessivamente uma sugerida condição de fonte de si mesmo?

Ao escrever este livro tive em mente a relação entre corpo humano e corpo da criação e, a todo instante, me perguntava: a linguagem reside em uma estalagem intemporal ou profana? Não parece que seja o sublime o que nos liberta, mas antes o convívio com as formas mais espúrias de comunicação que o homem soletra na própria carne, no próprio espírito.

Em um entranhável ensaio sobre o terror e a piedade, diz Marcel Schwob que “a arte consiste em dar ao particular a aparência do geral”. Os estudos aqui esboçados mesclam piedade e terror como formas de dedução e sedução dos desígnios e artimanhas da espécie humana. A idéia de visitação coloca-se sobretudo em um sentido religioso, pois fui sempre procurado como se lhes pudesse abrandar as dores. As confissões eram dadas, no maior dos casos, em transe.

Cabe a quem as recebe aprender a lidar com o imprevisto. Recordo um caso, no século XVI, em que diante do Diabo disse uma mulher: “estou disposta a te dar minha alma após a morte, desde que me faças o que desejo”. Ainda não estimo de todo o que me encomendaram, mas o fato é que não houve caridade alguma na escritura deste livro.

[2004]

[Texto de abertura do livro Estudos de pele, de Floriano Martins. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2004.]




terça-feira, 9 de setembro de 2014

JORGE ARIEL MADRAZO | Poemas de Floriano Martins


1. UNA VOZ PERDIDA: RAQUEL

¿Hasta cuándo puedo confiar en tus palabras?
Me pides que busque la salvación en tu nombre,
que desfallezca, aguarde, vague, permita
que me olviden todos. Me ilusiono creyendo en la visión
de tus encantos, y acato atenta tus preceptos.
Para los desengañados, debo abrir amplias fosas.
Y entrego mi cuerpo a aquellos que lo necesiten.
Una vez más padezco, y aguardo, y me vuelvo
nada, un retazo, una sombra perturbada,
hasta que me canse e indague por los siete llantos
de mi alma exánime: ¿un día me consolarás?
Abro la mano y persigo los rastros de mi destino.
Me extravío allí tantas veces que ya no distingo
a mi único suplicio: ¿tú, cuándo me consolarás?


2. LA NATURALEZA MUERTA

Cadáveres en lágrimas,
¿no hay nada más inverosímil en tu existencia?
Tres tramos de escalera antes de la caída,
garabateabas de memoria unas palabras finales.

¿Con quién hablabas en tu camino hacia el abismo?
¿Qué voces heridas y extranjeras
rugían en tu drama, casi borrachas, casi voces?
¿Será acaso tan inmensa la eternidad que no podamos encontrarnos en una tarde de sábado?

Silencio rocoso, enfurecido en su casco carcomido,
¿qué vicio tan extraño convierte todo en angustia?
Cadáveres listos para una cena de dolores,
sollozante cosmogonía reclinada en el vacío, ríos de insectos piojos róbalos muertos pulgas babosas lentejas podridas latas de aceite -naufragio quemante- herrumbre de faros, tumbas fluctuantes -¿estupor frente a la sangre de las noches?

Hay una distancia ya clásica entre lo que piensas y lo que eres, tinieblas de actitud, bautismo de cruces, sofismas gastados, coro de ángeles, siempre un mismo puerto de aventureros,
lugar poco probable para nuestro encuentro.
Más aún cuando no te rebelas, entre cadáveres remando contra la muerte,
restos de comida fractura de muletas gordiano de heces -¿de dónde cae el tiempo? -el verso se quiebra en todo momento

¿Dónde estás? ¿Dónde habitas?
Indago dónde podrías haber nacido.
Habitualmente rodeado de cadáveres,
¿tu noche será la gran industria de los desvalidos?

Metáfora decaída, cantina de precios exorbitantes, estamos siempre a dos pasos de algo, pérdidas acumuladas, rutina de miseria soluble y pastel de ansiedades -¿será éste tu mundo descomunal, tu biblia que todo abarca pero nada percibe en lo íntimo, pandereta de la joven Esmeralda, mujeres tatuadas a estilete, muchachos cercenados por no portar armas, un huevo de tortuga del cual escapa un yacaré, la suprema gloria de la superficialidad, muerte entre la piel y el abismo de los sentidos, bandejas de bayas y uvas servidas en conferencias de paz, artistas al vacío, suplentes de alquimistas accidentados en el trabajo, imbéciles especulativos, cucarachas familiares, durazno pitomba açaí todo de oro, muerte eterna? ¿será?
¿En qué océano descomunal te escondes, poeta?
Disfraces: una amargura telúrica una máscara dionisiaca un barroquismo ululante -ah, manera formidable de no estar en el mundo.
Un demonio triste escribe un banal itinerario de arrepentimientos.

Tus cadáveres ya no te soportan.


3. EL ABUSO DEL VÉRTIGO

El coloso en fragmentos me desgarra. La tortura se mantiene en pie.

René Char

Cobijo tu cuerpo en mis manos,
entre rayos de sudor, desfallecido.
La ruina de la belleza (¿querida fealdad?)
es que siempre retorna a sí misma.
¿En qué punto extremo de tu amor
brota la renuncia a la insensatez?
Un cuerpo desamparado me insulta
con su humanidad fuera de lugar
Escombros que se acusan entre sí
por el despreciable vértigo alcanzado.
Avaricia de formas con que osar
el centelleo de mil voces trepidando
en sacrificio, como si la noche, oculta
en la fortuna de cada habla desventrada

fuese la llaga deífica, sol o cenizas.
Evanescente como estás, me abisma
seguir leyendo un torrente de páginas
en la piel blanca y desecha de sentido,
abismo que es el centro de la angustia,
hortaliza victimada por la consagración.
¿Es la memoria un cínico abuso del dolor?
¿De qué está hecha la tragedia de la belleza?
Tambor de voces, relato de gozos, luz
faltante sobre el escenario en ruinas.
Placer de caídas que nos alimentan.
Designio, veneno o ruego de plagas.
Sé que te pierdo ahora, en mis brazos
no tengo sino el fulgor de tu muerte.

Lo que dejo de ser se tritura a sí mismo,
suplicio que acentúa la miseria humana,
indicios de pérdida albergan disfraces.
¿De qué muere algo muy dentro de nosotros?
Anuncio y sigilo, odio y amor, pequeña
o gran muerte, en intervalos o no.
Cómo dolía en ti el verbo imposible,
conjugar el dolor en vicios de lenguaje,
rehacerte lacerando tiempo y espacio.
No quiero que mueras en pedazos.
El vacío es húmedo, colmado de sí mismo.
Dios no muere de odio. Menos aún
se agota el hombre en su orgullo.
La refutación de la muerte está en su dolor,

como la negación de lo que nos contradice.
¿De qué mueres? Todos sabemos de la bala
que tu cuerpo recibió en mi lugar.
Odio o aprobación, lo anunciado se dio.
Desnuda y linda como estás, ahora muerta,
odio perseguido por el azar, gólgota
ajustándose a nuevas formas de éxtasis,
no veo sino tu cuerpo, inactivo
en la oscuridad que lo ilumina, chorro
de brea en la viscosa lámpara del destino.
"¿Qué hubo?", preguntarían, sin duda.
Muerta a tiros cuando al entrar
en una farmacia, nos encontramos
con ese "¡al suelo!", y mi negativa.


4. UNAS VESTIMENTAS

Paños desnudos.
Ninguna imagen sangrando en la piel
de tejidos listos para la caricia.
Recito esa desnudez con un par de alas.
Un demonio agachado
pegando sus labios a los míos.
De donde tú me ves, yo sería un arroyo de huesos,
calcinado deleite de tus almas:
unas pocas, las que no supieron
preservar el horror que las anticipa
y comprende.
Rostros engordados en ceremonias...
¿Y cómo te ubicas, demonio,
mordiéndome los senos, cómo te ubicas?
Un mirar para escoger huesos.
Carbones astutos y conocedores de la fábula.
Mira bien lo que traigo conmigo:
este cuerpo menguado en débiles lunas.
¿Preparas una piel para mi?
Dame tus cuchillos, espolones, cuernos,
la punta imperfecta de tu falo.
Ves cómo me hago en mil muslos,
viscosos como cebos, y todos deletrean
la caída que anuncias.
Los paños
sobre el vacío, desnudos.
Equilibrio derrumbado hacia el suelo,
rostros deshechos de víctimas que ya no alcanzan el ofertorio, el pie de un dios hallado en excavaciones por donde me consagras,
puto demonio,
por donde
me despedazas deseosa de tu salud.
Mi cuerpo en astillas, santuario decrépito
de tu perversión,
cascos arañándome el tejido de la memoria, sí,
un mínimo dolor recorre procedencias insospechadas,
y sabes cuánto me dolía tu abundancia,
el pote que indicas y, ansiosa, me lanzo a buscar allí la respuesta para el afligido cultivo
de dolores
por todo mi cuerpo.
Cargo conmigo todas las formas
con que me atacas.
¿Qué máscaras perpetuamos: las mías, las tuyas?
Mis labios te queman la piel.
Aceites encendidos mientras nos deshacemos.
Paños como papiros, inscripciones invisibles que enseñan a mantener caliente la cabeza de un dios muerto.
Desnudos.
Con la medida del infierno en cada pliegue
del tejido de que estamos hechos.


5. LOS PERGAMINOS

Estás en tu ausencia.
Ni cerca ni distante, en camino al bien y al mal.
Tampoco importa lo que te espera.
Ningún dolor mal afirmado.
Formas despedazadas en el vientre y en la llama de un mirar perdido.
Apenas formas, debilitadas mas no del todo ajenas.
Evidencias que comunican una escritura sacrificial.
Lugar sagrado adonde van a dar todas las voces en que confías.
Templo o túmulo: abismo, multitud, destierro.
Versos se escurren entre lamentos sinuosos, vértigos de otoño.
Lo que escucho, lejano, es a mi padre arrancado del túmulo.
La vida reiniciada en cada muerto.
Los amores perdidos, vaciando casi todos los límites del mirar.
Lo más profundamente irreparable, lo inconcluso entre derrames de enigmas, encrucijada de vómitos de lo que es apenas temor o insatisfacción,
nada,
nada está tan presente en ti como tu ausencia.
La vida, sosteniéndose apenas con su sastre de ilusiones.
Rostros desconocidos surgidos en sueños y cenas, sin que te des cuenta de que son todos tuyos.
Y todo lo que buscabas era un falso reposo.
¿Qué valores dar a lo que apenas escrito pierde sentido, a lo que se fragmenta sin noción de qué se le opone, a esa maraña de imágenes desistiendo de la risa y el temblor?
Donde estás nunca serás.
El destino siempre conduce a la pérdida.
Un canto como una escena dislocada en el tiempo.
El infortunio como el reventar de una alegoría: el hombre no cabe en lo que posee.
Para morir escoge una camisa limpia.
Anotaciones de un incierto desprecio por la especie.
¿Quién lo despertará para la muerte debida?
Ruidos de sombras negadas, el cadáver hechizado del que hablaba René Daumal, perfiles de cenizas y estatuas arrepentidas, carnes estalladas por ausencia de labios, desbordarse, desbordarse, rezaba la inscripción en la entrada del pub, mujeres dispersas como hierba de noche, hombres tontos adictos a sí mismos; luego, el maravilloso fin de todas las cosas: aplazarse.
No estás sino en lo que niegas.
Suplicio guardado como un as en la manga.
Todos pasamos por aquí muchas veces, se repiten las imágenes y no hay gracia, ya, en creerse iluminado o expatriado.
Cualquier forma precaria puede ser fuente de algún desvarío.
Al perder la noción de la caída, de nada vale la avanzada edad.
Las formas hablan con lo que son, saben que no deben jamás ignorarse: he ahí cómo perciben que las mutaciones son una afirmación de principio.
¿Dónde estás, ahora?
Lo que concluye es lo que no se reconoce.
Como abrimos un nuevo hueco entre los hijos crecidos, la ducha esponjosa del hábito, la secreta envidia de ínfimos detalles en la vida de los otros.
¿Existirá siempre un recuerdo?
Camino al infierno, ya en la última vértebra, siempre alguien indaga sobre los miserables planes del desorden,
el inviolable desorden con una voz desesperada al que se refería Gui Rosey antes de desaparecer, tragado por tal inquietud.
Un desconfiado método de la armonía.
Lugar inexacto donde todo se contempla y raramente se completa.
¿Qué hay de más en tus versos, poeta?
Esa pobre vida incompatible será siempre la misma.
No es tuya, simplemente no es.
Tu lengua recorre las sílabas mejores.
Un lado y otro de las manos, habituados a reanimar sufridas metáforas.
Un mar retraído, una espléndida chispa de tu culo, brote de intangible orgullo de una memoria de gozos, idas y venidas en labios violentos,
llamas,
como me llaman ojeras tensiones excesos.
El flameante recurso con que te agotas.
Los espejos se engañan en el exceso de fidelidad.
Nada está exactamente como está.
Ni siquiera las pérdidas, de cuanto hay en mí de innumerable.
Con todo, no tengo tiempo para arrugas,
el infierno deberá hallar otra manera de hacerme una visita.


6. SI LA NOCHE CAYERA

¿No te renuevas?
Un sentido sibilino evocado,
la obsesión por el misterio que recorre la noche en harapos, ausente de sí o al menos tomada por lo que no comprende,
es así que nos damos las manos,
la voz de Paula Cole en el concierto de Peter Gabriel,
en tus ojos, en tus ojos, me recuerdas que Nerval decía a George Bell que se nutría de su propia esencia y no se renovaba.
Somos subversivos patéticos o lánguidos apasionados,
dopados por las comodidades del registro civil,
sudores enojosos, un devaneo cartesiano,
nada que nos eleve al supremo nivel de metáfora alguna.
¿A qué temes en tu paseo nocturno?
¿El drama de la noche será tan compacto voraz penetrante como la idea de que cruzas despierta delante de todo?
¿No abrirías una ventana en tu piel?
Vista nocturna, tarjeta postal, escena perdida de un film,
¿lees todavía mi cuerpo en libre asociación?
Tenemos sexo con los hijos y amigos, nos sentamos en un bar para grandes carcajadas nocturnas, lo auspicioso no necesita interpretación,
en tus ojos, asombros florales tomando forma humana, el libro que se lee a sí mismo consciente de la existencia de otras páginas,
garabatos de un dilema fatídico,
nunca supimos lo que ocurrió en realidad.
Un mito cualquiera se agita,
tú eres mi gozo, seré tu inmensidad.
El arreglo floral sobre la mesa nos dice que la noche insiste en recuperarse.
El verso cae sobre el paño.
¿No te renuevas?
¿Quién hace la pregunta?
"El desánimo ha escrito versos mejores que la alegría de vivir". Esto se dice en todo instante a un corazón que se siente traicionado. Páginas de desaliento, rostros sofocantes, no eres nada, tú no eres nada y aún así te amo,
oh infierno cortés, dinastía de sentidos objetivando algo,
el amor sigue siendo toda la intransigencia posible,
el golpe menos artificial del ser,
el abuso central de nuestras limitaciones.

Al menos, si la noche cayese yo podría abrir tus brazos de un extremo al otro y colgarte de ella, lamiendo tu cuerpo en negación de todo sacrificio, hijos, sexos, planes,
bendiciones, sudores, financiamientos, mi lengua dando cuenta de tus sabores; la noche, la noche no es nada, Nerval, el mundo cae sobre nosotros el día entero,
amo y desamo a toda hora, lo que en mí hay de más mediocre no espera ya la noche para manifestarse,
no vamos a ninguna parte, dopados por laudos inventados, acuerdos de sindicatos, votaciones en la cámara,
tu cuerpo suspendido y sin sentido, porque ya no sé qué hacer con él,
ya no sé qué cosa escribir.
¿De qué muere exactamente la fe en un cuerpo?
¿Del anuncio de un método? ¿De una sospecha de fraude?


7. EL OFERTORIUM

La pierna dulcemente erguida sobre la página:
un verso así no escribes sin mi gozo
Sabía cómo marcar las frases donde retornar.
Los dos se buscaban entre enigmas y risas,
devolvíanse mutuamente lo que iban encontrando:
restos del otro, pequeñas sombras dispersas.
Te abro todos los labios de la casa. ¿No ves allí,
en el balcón, una parte de ti ya olvidándose?
La voz podía ser entregada a cualquiera de ellos,
sorprender a la noche en un capítulo
de espasmos: ojos garabateándose, imágenes
saltando del sexo de ambos, toda ella, todo él,
todo para encontrarse y decir: ya estuvimos.
Sólo el amor nos revela aquello que perdemos.



[Tradução de Jorge Ariel Madrazo. Caricatura de Floriano Martins, por Klévisson Viana. 2008.) 



LUIZ LEITÃO | Floriano Martins poems


MYTH’S BELOVED DISGUISE

There was a silence there, lost in the middle of the night.
Perhaps between the cracks in time’s ridge.
Or a swollen scar hallucinating the past lost.
One never knows how much pain rebounds.
Suffering is in the boundary of conscience.
Some cities know more than others how to abandon themselves.
Lights were as if night barely slept.
The stairs were reluctant to show the way to those who have proven better readers of urban afflictions.
Archeology tells us about subterranean trails, stone, musk and water that shelter certain unsuspected seals of history.
Everything makes us believe past unveils when we dig beneath.
Yet there are cities that hide their history upstairs.
A self-abandonment embroidered in heights, covered up by the earthen agitation of urban makeup.
Plain cities, and without hereditary excavations.
Who knows my, maybe yours, certainly someone’s city.
Seaside places that use Sun to distract the incorporeal mourning.
And that deforest its essence like weed.
Cities tormented by the refuse of their own shadow.
Here night never sleeps.
It recapitulates the silence to which it feels imposed.
This disconcerted emptiness of the youngest ruins of history.
Air ruins, whose stairs myth tries to disguise.
Possibly remains of some sin we ignore.


WOMB OF RUTH UNDERWOOD

The streets are intersected with eyes of asymmetric angles chewing the essence of those who pass by.
A frantic palpitation of symbols makes everyone fall in the fugacious detail of nostalgia, gathered under the shade of memory, blaming sunset for being melancholic, cathedral for being rectilinear, abyss for being inaccurate.
The most single notes repeat.
There are chords which know how to spell the distinct image in each bridge or stage.
It’s not the same as being an art catcher or a street one.
By there, always when someone runs, is never reached by the name.
When you fold the notes landscape quakes.
The skin dedicated to the transcription of delirium.
It’s when one hears the solidity of likeliness, the delighted plans of all we write only by glance, the vital spell at everyone’s range.


A NIGHT IN SYDNEY

How could I have painted the house with such a huge contrast of scenes?
Furniture whispering by the corners, a fever of windows collected to their inner tremble, taps committed with keeping silence for long eternities.
I had forgotten everything that night.
I tried at least to recollect the name of that woman lying by my side.
Descending to the kitchen for some water I saw how my steps on the steps were already there, previously to me.
All over the house the signs multiplied in a same enigma: everything I tried to do I myself had already done.
From the window facing the yard I could see buckets of paint, sandpaper, brushes, the stairs bathed in evidences.
Lips frayed of some twilight, wine spilled on the carpet, Ben Webster still played Come rain or come shine.
Night immerse in scenic silence.
Her body multiplying in characters which are codes of emptiness, painful shades, restless figures of dreams I could never understand.
The house is some kind of souls sewing, with its stage of paints and architecture of reflexes.
I’m already not anywhere, but she hurts me as if she were all my life.


ANJA LECHNER’S WRISTS

Your body receives on your bed each night a distinct verb.
Little household tasks protect the day from other subjects.
I sit back on the worn out abyss’ shade counting your kisses.
The first one shows me the secrets of powder.
Another makes me believe I can fly.
Like silent defiance are the small faces buoying in each look’s amazement.
Signs of disorder that life elects in its fugacious transit through the prosperity of time
Words with which I dig the invisibility of your figure.
Silence we shelter beside them so that they preserve what they know about us
The pendulous movement of your kisses stresses the labyrinth they weave inside and outside my lips.
A Brazilian describes the desires’ images like voracious amulets.
I re-baptize your rites like who unveils the virtues of storm.
Your body sophisms the disguises of the night with its verbal spectra.
Do you recognize the indecipherable lust of each pantomime?
Do you still recall the name with which I pretended to be you?

I myself provided to forget, so that you had no way back.


A NIGHT IN SANTO DOMINGO

The night reproduces itself in my passing eyes.
We don’t let it sleep, so that it accompanies us by the wrecked corners, myth disguised in illegible drafts, petals grimy of memory of self forgotten memory.
Loneliness escaping through the window with its small transfigured riots.
Don’t forget of anything tonight, so that we don’t have come back here tomorrow.
Give me your lips one last time before they vanish from my vision’s ceilings.
Sweaty furniture while we improvise new sites in absentia of gravity.
When I saw your body learning how to fly in a Sky of aquarelle brushed up its extensive maritime architecture and clouds danced like trees in the wind.
It was when I unveiled the pain of this Word made up of many falls.
The same that now multiplies in my eyes that cross an endless corridor which leads from an horizon to another in the wakeful hours we get lost.
I recognize in silence certain relics that cross fate’s sill, whose language, always legitimate, confides a defiance after another.
Wherever you are, don’t reply me.


MEMORY OF CONSUELO BENEVIDES

It takes too long to know where pain keeps its bones.
Clip the verbs, recognize  the best identified voices with each conflict,  whisper small behavior changes.
The faces were resigning to a theatrical expression.
I didn’t see you otherwise than slices of shades, vestiges, details of memory, were I used to go scribbling my pain.
When I saw the first sign o f your life, I had already  given up being human.
I was recognizing your being  by marcs.
Much of what came to me confused with what I stated to imagine as being my son.
I don’t believe we have left each other anything in manuscripts.
Many times what we recover in life has to do with your abyssal sense of imitation.
I will never know if you are my lost  son  or the idealized image of the same I have just found in a   lot of replicas.
We imitate the future.
How to believe in past?
It doesn’t matter.
You are here in some place.

I’m not yet  anywhere.


A NIGHT IN TENERIFE

I wrote down your name on a leaf lost from the dream.
The night wakes me up telling stories which some day would pass here.
The Moon laughed as a lover hidden under the bed sheet waiting for danger to pass.
While I waited to read my poems I realized the world didn’t pass there.
Images self projected in dissonant repetition: here, there, love, poem…
Only a verb moved: to pass & to pass & to pass.
Full territory of reticence, when I touched your skin I unveiled a night alien to time.
The poems lost motive.
Your body gained a crafty measure of eternity.
Until today I don’t know where I went to since I said goodbye to you.
The fact is that everything passes and your island doesn’t differ from other feelings in the rest of the world.
The Moon pointed the fountain in the centre of the square and recorded that something on the way to Brazil passed by and eventually stayed.
The day uses to forget many things.
A greenish stone celebrates the volcanic night in your body that we lie down to foresee the navigation chart of the fountain.
We didn’t go anywhere.
We were perhaps the only night in Tenerife when nothing passed there.


[Traduzidos por Luiz Leitão. Perfil de Floriano Martins, gravura de Fabio Herrera, 2004.]