Como se fossem nomes, mas sem uma língua, sobrepostos.
Em todos os sentidos escrevendo a escrita na parede
como pedras inscritas na pedra: tempos sobre tempos.
Manuel Gusmão
1
Toda a criação está
feita de equívocos, exageros, precárias aproximações da realidade, falsas
suspeitas. Acaso haverá algum instinto infalível? Débil o demiurgo a
inclinar-se sobre o detalhe de provas de verossimilhança de suas imagens. Os
melhores poemas, no melhor dos casos, são apenas poemas. Por mais que se mova -
e por vezes algo se move -, a natureza humana aproxima-se de uma pauta maçante
de seres inanimados. Talvez tenhamos que considerar a possibilidade de uma era
em que não criaremos mais nada. Nos despossuímos tanto do surpreendente
que toda a existência já se sente convertida em mera fatalidade. Tal suspensão
do maravilhoso erradica sensibilidade indispensável para cometer equívocos e
exageros. O mundo liquida-se por certo e infalível. De que povoaremos então as
próximas ilusões? A arte nunca tratou de outra coisa. Conviverá acaso com
fantasmas que tenham alguma tendência ao previsível?
O homem já se chamou
eu, nós, nenhum. Perdeu-se entre si e os demais. Julgou sempre o outro. Qual
nome terá agora? Um tamanho desapego moral requer nomenclatura específica.
Ainda não é o momento. O mundo se torna tão razoável que logo será possível
imaginá-lo. Haverá ainda alguém que indague sobre a substância do que se diz?
Triste fim o dos biógrafos. Os visitantes acidentais dirão dessa terra
devastada que não lhes provocou sequer uma profunda melancolia. Está perfeito
que não se possa simplificar mais nada. Esta é uma lição que nos ensina a
natureza ao perder sua criatura deliciosa? Não sejamos tão cínicos.
Regurgitemos espadas e chumaços de cabelos. E sobre o horizonte uma elipse
emburrada negando a compreensão dos artifícios. Mar de tumbas, brilhantes vozes
invisíveis, tudo isso se foi, não ficou uma única metáfora sobre a terra. Os
poetas agora estão felizes. Abolida a sucessão de tempo e espaço, por ali foram
também descontinuidades e diferenças. A arte quando muito pintará a si mesma:
uma natureza morta.
2
Lendo The devil: a mask without a face, de
Luther Link, encontro-me com uma simpática observação, a de que “às vezes a
fonte de uma obra é a própria obra”. A idéia de interpretação está ligada à de
indução e presságio. O sopro de uma delas pode tornar crível a criação, mas não
a desata no sentido de influir no desentranhar-se da mesma.
Quando escrevo sobre
um corpo morto encontrado na escada do prédio onde mora um amigo, não importa
se este corpo corresponde à realidade de meu encontro com ele. O que vemos em
sonho ou no palco é tão parte de nossa vida quanto o que nos anima na própria
carne. Imaginemos de outra maneira a colocação de Luther Link: às vezes a fonte do que sou é o que
realmente sou.
Aceita essa aparente
perversão, indago acerca do corpo específico da criação, tratemos do poema ou
do próprio homem, sendo ele obra de Deus ou não. O corpo leva em si uma queda
de conceitos. Religiões, políticas, filosofias buscam lhe fixar uma ordem,
através da qual ele é apenas um meio e jamais o fim.
A transcendência é a
única tábua de lei de qualquer manifestação humana? O assombro vincula-se a uma
idéia de rejeição, onde estranhar é negar. Se acreditarmos que a obra é
incurável, dada a perspectiva de uma relação intrínseca com o criador, o que
esperar do homem que está sempre a buscar obsessivamente uma sugerida condição
de fonte de si mesmo?
Ao escrever este
livro tive em mente a relação entre corpo humano e corpo da criação e, a todo
instante, me perguntava: a linguagem reside em uma estalagem intemporal ou
profana? Não parece que seja o sublime o que nos liberta, mas antes o convívio
com as formas mais espúrias de comunicação que o homem soletra na própria
carne, no próprio espírito.
Em um entranhável ensaio sobre o terror e a
piedade, diz Marcel Schwob que “a arte consiste em dar ao particular a
aparência do geral”. Os estudos aqui esboçados mesclam piedade e terror como
formas de dedução e sedução dos desígnios e artimanhas da espécie humana. A
idéia de visitação coloca-se sobretudo em um sentido religioso, pois fui sempre
procurado como se lhes pudesse abrandar as dores. As confissões eram dadas, no
maior dos casos, em transe.
Cabe a quem as recebe
aprender a lidar com o imprevisto. Recordo um caso, no século XVI, em que
diante do Diabo disse uma mulher: “estou disposta a te dar minha alma após a
morte, desde que me faças o que desejo”. Ainda não estimo de todo o que me
encomendaram, mas o fato é que não houve caridade alguma na escritura deste
livro.
[2004]
[Texto de abertura do
livro Estudos de pele, de Floriano
Martins. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2004.]
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