quarta-feira, 10 de setembro de 2014

PARÓDIA DO CADAFALSO | Estudos de pele



Como se fossem nomes, mas sem uma língua, sobrepostos.
Em todos os sentidos escrevendo a escrita na parede
como pedras inscritas na pedra: tempos sobre tempos.

Manuel Gusmão

1

Toda a criação está feita de equívocos, exageros, precárias aproximações da realidade, falsas suspeitas. Acaso haverá algum instinto infalível? Débil o demiurgo a inclinar-se sobre o detalhe de provas de verossimilhança de suas imagens. Os melhores poemas, no melhor dos casos, são apenas poemas. Por mais que se mova - e por vezes algo se move -, a natureza humana aproxima-se de uma pauta maçante de seres inanimados. Talvez tenhamos que considerar a possibilidade de uma era em que não criaremos mais nada. Nos despossuímos tanto do surpreendente que toda a existência já se sente convertida em mera fatalidade. Tal suspensão do maravilhoso erradica sensibilidade indispensável para cometer equívocos e exageros. O mundo liquida-se por certo e infalível. De que povoaremos então as próximas ilusões? A arte nunca tratou de outra coisa. Conviverá acaso com fantasmas que tenham alguma tendência ao previsível?

O homem já se chamou eu, nós, nenhum. Perdeu-se entre si e os demais. Julgou sempre o outro. Qual nome terá agora? Um tamanho desapego moral requer nomenclatura específica. Ainda não é o momento. O mundo se torna tão razoável que logo será possível imaginá-lo. Haverá ainda alguém que indague sobre a substância do que se diz? Triste fim o dos biógrafos. Os visitantes acidentais dirão dessa terra devastada que não lhes provocou sequer uma profunda melancolia. Está perfeito que não se possa simplificar mais nada. Esta é uma lição que nos ensina a natureza ao perder sua criatura deliciosa? Não sejamos tão cínicos. Regurgitemos espadas e chumaços de cabelos. E sobre o horizonte uma elipse emburrada negando a compreensão dos artifícios. Mar de tumbas, brilhantes vozes invisíveis, tudo isso se foi, não ficou uma única metáfora sobre a terra. Os poetas agora estão felizes. Abolida a sucessão de tempo e espaço, por ali foram também descontinuidades e diferenças. A arte quando muito pintará a si mesma: uma natureza morta.

2

Lendo The devil: a mask without a face, de Luther Link, encontro-me com uma simpática observação, a de que “às vezes a fonte de uma obra é a própria obra”. A idéia de interpretação está ligada à de indução e presságio. O sopro de uma delas pode tornar crível a criação, mas não a desata no sentido de influir no desentranhar-se da mesma.

Quando escrevo sobre um corpo morto encontrado na escada do prédio onde mora um amigo, não importa se este corpo corresponde à realidade de meu encontro com ele. O que vemos em sonho ou no palco é tão parte de nossa vida quanto o que nos anima na própria carne. Imaginemos de outra maneira a colocação de Luther Link: às vezes a fonte do que sou é o que realmente sou.

Aceita essa aparente perversão, indago acerca do corpo específico da criação, tratemos do poema ou do próprio homem, sendo ele obra de Deus ou não. O corpo leva em si uma queda de conceitos. Religiões, políticas, filosofias buscam lhe fixar uma ordem, através da qual ele é apenas um meio e jamais o fim.

A transcendência é a única tábua de lei de qualquer manifestação humana? O assombro vincula-se a uma idéia de rejeição, onde estranhar é negar. Se acreditarmos que a obra é incurável, dada a perspectiva de uma relação intrínseca com o criador, o que esperar do homem que está sempre a buscar obsessivamente uma sugerida condição de fonte de si mesmo?

Ao escrever este livro tive em mente a relação entre corpo humano e corpo da criação e, a todo instante, me perguntava: a linguagem reside em uma estalagem intemporal ou profana? Não parece que seja o sublime o que nos liberta, mas antes o convívio com as formas mais espúrias de comunicação que o homem soletra na própria carne, no próprio espírito.

Em um entranhável ensaio sobre o terror e a piedade, diz Marcel Schwob que “a arte consiste em dar ao particular a aparência do geral”. Os estudos aqui esboçados mesclam piedade e terror como formas de dedução e sedução dos desígnios e artimanhas da espécie humana. A idéia de visitação coloca-se sobretudo em um sentido religioso, pois fui sempre procurado como se lhes pudesse abrandar as dores. As confissões eram dadas, no maior dos casos, em transe.

Cabe a quem as recebe aprender a lidar com o imprevisto. Recordo um caso, no século XVI, em que diante do Diabo disse uma mulher: “estou disposta a te dar minha alma após a morte, desde que me faças o que desejo”. Ainda não estimo de todo o que me encomendaram, mas o fato é que não houve caridade alguma na escritura deste livro.

[2004]

[Texto de abertura do livro Estudos de pele, de Floriano Martins. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2004.]




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