terça-feira, 14 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo I | Parte 1


No hay infierno que no sea la entraña de algún cielo.

María Zambrano

I - CICLO PRIMEIRO DE SACRIFÍCIOS

1

Não havia propriamente um cenário. Luzes se misturavam, desconexas. Quadros, esboços, situações cabíveis em divergentes relatos. Indagar sobre o passado era uma abstração beirando o ridículo. Havia um desmazelo na atitude de cada uma daquelas vidas. Um antes raras vezes identificado. Assemelhavam-se a uma irrepreensível matéria bruta. Como escrever uma novela a partir daí? Repetir incessantemente cenas, rostos, memória deixando-se envelhecer, tudo se desgastando, aos pedaços e sem um mínimo cálculo? Ou um texto devotado à repetição, porém contra toda forma de ascese? Primícias de nada, céleres afagos da vertigem. Aquelas pessoas não tinham - jamais tiveram? - a pretensão de chegar a condição alguma. Quando muito, o testemunho da própria (e ainda assim vaga) existência, tão logo o tempo escoasse todo um ciclo de sacrifícios, perversões, abandonos. Impossível definir o que poderemos ser aqui. Personagens? Decerto. Porém não elegemos essa via árdua, nem viemos dar nela por não haver outra saída. Nenhum acesso do que se é chega a explicar o que se alcança: abismo, túmulo ou farol. Entre estudos verbais e estados oníricos, nos mutilamos e recriamos, em estúpido e franco desatino. O que esperar de uma novela assim? Nada. Nem se poderia. As novelas não possuem tal função. Não são estorvos ou válvulas de estupros. Os pobres de espírito é que esperam algo de Deus. Talvez um pérfido demiurgo, pelo acúmulo secreto de ignomínias, espere algo do efeito da trama que lhe outorga a crédula horda. Adiantemo-nos todos até uma próxima coxia, a esperar algo, com ar introspectivo, cientes de que o acaso - ou mesmo um simples caso, o fato sem transcendência alguma - nos visita com parcimônia em uma ensolarada manhã de domingo. Sentados, escreveremos uma mesma e atônita novela de nossas vidas. Ensolarados e anônimos, não somos senão mofo e presunção. Uma novela se faz assim? Quem tanto as lê, deverá sabê-lo.






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