VI - INVISÍVEIS TRILHAS
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Pequeno Ansioso era um
autor desconhecido de suas próprias histórias. Não vislumbrava todo aquele
texto que seguia dispondo com os dias. “O espírito é tudo”, frase a ecoar em
seu pensamento. Tira-se daí uma novela? É o que pretendem? Um garoto cercado
por uma sôfrega herança de imolações. Um louco familiar e uma aturdida de rua,
sua educação sentimental, nem virtude ou fuga, apenas um cenário, inverossímil
se muito, um atrevimento do destino, uma vez aceito. Mácula, renúncia,
desgaste, se entendidos na raiz não passam tais conceitos de manifestações da
frivolidade. Pequeno Ansioso percorria a imensidão confluente daquelas duas
casas, a da mãe e a da avó. Não importava o tempo em que se dava a construção
dos dois altares. As demais figuras eram evidências de uma alteridade. Como o
velho das vozes, também recolhia os sinais de tudo à volta.
Teatro,
poema em prosa, novela? Não chegamos até aqui para isto. A palavra se artefaz
sem o constrangimento do gênero. Alfredo Aquilino invocava sempre o próprio
testemunho sobre o que se passara, qualquer havido.
- A noite não privilegia nada. Minha insônia apruma seu
alvo: versos roubados. Eu os escrevi todos durante o dia, algum dia.
Mãe Dolores não voltou mais a incorporar nenhuma entidade. O
menino voltara a bulir nela de todas as formas.
- Diabinho, não aprende nunca!
Os dias balançavam-se. As noites não eram mais primordiais
que eles, singulares em devoções e prevaricações. Os livros configuravam-se
abismo e altar, âncora e trilha de vidros moídos. O menino percorria a casa
única, mesclando-se a cada mínima história desvelada em fraturas e requebros.
O que sustenta uma história é o imperceptível. Tudo em nós
não busca senão um símbolo profundo, uma abusada virtualidade que a tudo
comporte e defina. Ao sondarmos nossa lógica ulterior, não fazemos outra coisa
que atribuir a todas as visões os tons e meandros e consonâncias de nossa
plurivalência. Somos, por assim dizer, um engano totalizante, uma substância
radical da improbabilidade do ser. Sucedemos a nós mesmos e viemos sempre da
mesma matéria delirante com que criamos e destruímos o mundo à nossa volta.
Nenhuma imagem corresponde à sua ideia: súmula, semente, medula: diagnóstico
gozoso da queda, mas nunca desassossego suficiente que implique a renúncia do
que somos. Nem mesmo morrendo mil vezes ou tendo milhares de rostos
desfigurados e incontáveis traços de derrota. Sequer parece ser algo contra si
mesmo. O homem simplesmente não aprende a reanimar com seu mistério interior as
ruínas de um legado único: ser vários sendo um só. Não há nódulo que o engrandeça.
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