sexta-feira, 24 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo VI | Parte 26

 
VI - INVISÍVEIS TRILHAS


26

Pequeno Ansioso era um autor desconhecido de suas próprias histórias. Não vislumbrava todo aquele texto que seguia dispondo com os dias. “O espírito é tudo”, frase a ecoar em seu pensamento. Tira-se daí uma novela? É o que pretendem? Um garoto cercado por uma sôfrega herança de imolações. Um louco familiar e uma aturdida de rua, sua educação sentimental, nem virtude ou fuga, apenas um cenário, inverossímil se muito, um atrevimento do destino, uma vez aceito. Mácula, renúncia, desgaste, se entendidos na raiz não passam tais conceitos de manifestações da frivolidade. Pequeno Ansioso percorria a imensidão confluente daquelas duas casas, a da mãe e a da avó. Não importava o tempo em que se dava a construção dos dois altares. As demais figuras eram evidências de uma alteridade. Como o velho das vozes, também recolhia os sinais de tudo à volta.
Teatro, poema em prosa, novela? Não chegamos até aqui para isto. A palavra se artefaz sem o constrangimento do gênero. Alfredo Aquilino invocava sempre o próprio testemunho sobre o que se passara, qualquer havido.
- A noite não privilegia nada. Minha insônia apruma seu alvo: versos roubados. Eu os escrevi todos durante o dia, algum dia.
Mãe Dolores não voltou mais a incorporar nenhuma entidade. O menino voltara a bulir nela de todas as formas.
- Diabinho, não aprende nunca!
Os dias balançavam-se. As noites não eram mais primordiais que eles, singulares em devoções e prevaricações. Os livros configuravam-se abismo e altar, âncora e trilha de vidros moídos. O menino percorria a casa única, mesclando-se a cada mínima história desvelada em fraturas e requebros.
O que sustenta uma história é o imperceptível. Tudo em nós não busca senão um símbolo profundo, uma abusada virtualidade que a tudo comporte e defina. Ao sondarmos nossa lógica ulterior, não fazemos outra coisa que atribuir a todas as visões os tons e meandros e consonâncias de nossa plurivalência. Somos, por assim dizer, um engano totalizante, uma substância radical da improbabilidade do ser. Sucedemos a nós mesmos e viemos sempre da mesma matéria delirante com que criamos e destruímos o mundo à nossa volta. Nenhuma imagem corresponde à sua ideia: súmula, semente, medula: diagnóstico gozoso da queda, mas nunca desassossego suficiente que implique a renúncia do que somos. Nem mesmo morrendo mil vezes ou tendo milhares de rostos desfigurados e incontáveis traços de derrota. Sequer parece ser algo contra si mesmo. O homem simplesmente não aprende a reanimar com seu mistério interior as ruínas de um legado único: ser vários sendo um só. Não há nódulo que o engrandeça.





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