quarta-feira, 22 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo IV | Parte 21



IV - ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS


21

O quarto de Mãe Dolores arrumava-se de maneira incomum. Há dias eu não me aguentava, corroído pela inexatidão, fuzilado pela estranheza. Com tudo de mim eu era atraído por aquela mulher. E sentia-me como se arrastado para um ramo de abismos, uma descendência de agonias. Seríamos todos ceifados por uma crendice. Há muito a família já dava sinais de. Quando vi o quarto de Mãe Dolores tomando outro vulto, enfeitando-se à revelia do hábito, temi ainda mais. Ouvi sinos e logo pressenti decuriões encapuzados, o ar ondulando em incenso.
Apenas afastara a mobília para um canto. Só então percebi que um largo cano de metal varava o quarto de uma ponta a outra, na parede contígua à da cozinha. Ali havia duas correntes. A nova decoração concentrava-se na anunciação de um rito. Era um dois de novembro e graças à minha condição asmática eu seguia sendo poupado das lacrimosas visitas ao mausoléu da família, no cemitério Batista.
- Entra, querido.
Estava completamente nua, vicejante, descrita apenas por uma jactância mística, o céu em plumas de corvo, as letras através das quais percorremos salmos, um fino bordado do mistério. Como pode ser tão lasciva e inóspita a um só tempo?
- Quero te mostrar uma coisa, um guardado.
Um ínfimo porão madeirado sob as mãos, miniatura de uma sala de ocultação. Caixeta talhada em voluteados traços. Um dentro de penas tão múltiplas que disparatavam qualquer olhada. Um rabisco do infinito das aves. Ao lado, outra caixeta, contendo minúscula pedra. Qual o significado de tudo aquilo? Que amparo buscavam aqueles símbolos diante da nudez luzidia de Mãe Dolores?
- Não quero nunca mais te fazer sofrer. Tu és a minha pequena joia salva do mundo. Quero que me prendas naquele cano e que me ajudes a enxotar a desgraça que trago comigo, essa indesejável presença.
Eis o que eu teria que fazer: acorrentar aquela mulher, escolher uma pena qualquer e usá-la sobre o corpo desnudo, despertando-lhe o viço, até que provocasse a sorrateira entidade, quando então, sem nada indagar, deveria apenas enfiar a pedra na boca.
- Tão simples…
Preparados os apetrechos, a pedra aguardando a hora, nos iniciamos em um culto que jamais imaginara. O riso afrouxando-se em contorcidas dobras do corpo, espasmos de uma alegria provocada, cujas reentrâncias me eram assustadoras. Havia escolhido, por motivo em tempo algum estimado, a pena de uma pomba-espelho, possivelmente atraído pelas incisões violetas em negra lâmina. Não demoramos muito a sós. Tinha que me controlar. A pretidão veio de vozes despejando insultos, desamparos, abjeções. Pensei o pior que pude e tentei me ajustar àquele patético clima de impropérios.
- Your mother is a fat cow. All the women are here. Biblical flesh. Rotten flesh. Fathers and mothers and sons and daughters, everybody climbing together for all the eternity. It threads you in me, poor bastard, and you’ll have my past and my future in your hands.
- O que queres de mim?
Eis o toque sublime da tontice. Um levante qualquer me demoveu de uma tarefa tão simples: pôr a pedra na boca de Mãe Dolores.
- You shouldn’t ask me anything. I’m your shade, I’m your intrigue, I’m your mother. Fuck my body. You’ll never fuck my spirit.
Senti-me inteiro enredado, limado pela vileza do rito, culpável. Como alcançar a divindade e desarmonizá-la? Há momentos em que o ímpeto descrê de si mesmo. Olhava a pedra ali aguardando por sua função.
- Não és minha mãe…
- Flesh is mother.
Dizia isto e abria as pernas assediante. Queria meu gozo, a imagem sofrida, o salto no impossível.
- Não és nada. Não reconheço teu vulto. Não poderás jamais ser o que não aceito.
- Fuck my body…
Queria representar-me por inteiro em seu jogo. Não sei que forças eu reuni para a ruptura, possivelmente a maior delas: o abandono. Foi o que fiz, afinal: entreguei-me àquela pedra inserida bem fundo por entre os lábios de Mãe Dolores.
- Fuck you…
Bradava com todo o corpo. E embaralhava os selos de seu abismo.
- …Noi prosciugammo intero le forze del dio… Je n’écris pas mes viandes pour votre rise…
Engasgava, tentava cuspir a pedra, contorcia-se. O corpo se debatia com tudo o que lhe era possível.
- …Votre doleurIch bin lhr Schmerz…
As pernas iam ao mais alto, incertas, rasgadas. Peleja em seus tropeços o encosto desgostado, ferido, decaindo.
- I’m your pain… Tengo el deseo de un mundo sin recusas … As sobras, as sobras de Deus…
- Que Deus buscas agora?
- …Idiota senza cominciando…
E desfazia-se, escrita mínima, sumindo, os vitupérios já dissipados, toda aquela babel agonizante, a pedra embaralhadora de sentidos, a língua confundida, o absurdo de ser todos contra um só, contra cada um. O suor fluindo por toda a Mãe Dolores, um banho de forças.
- Schmer…
Escoava-se, não importando para onde fosse todo aquele dobrado da ansiedade.
- Me abraça com força, meu pequeno.
- Quem és?
- Não te assustes mais, meu menino…
A mulher estava ensopada de suor. Pequeno Ansioso chorava, chorava, como se diante de um desejo inacabado.
- Um beijo. Vem me dar um beijo, vem.
Deixou-se então acolher entre os seios de Mãe Dolores, soluçante.
- Me tira dessas correntes…

(Alguma conclusão diante de todo aquele horror? Não era boa hora para isto. As conclusões vão se dando com o tempo. Vão também se perdendo, e raramente aceitamos que de nada valem. Apenas a mais vulgar literatura explica-nos o que foi fortemente expresso por aquele corpo decomposto em falas alheias. Ermos da crendice? Com que espécie de vitalidade um rosto se oculta por trás de seu rosário de falsa moral? De que se ocupa a beleza quando não nos recebe em sua casa? Eu preferia o gosto do puro cansaço, o desuso de certas figuras de linguagem, a morte de um ente querido. Deixo que o abismo me tome pela cintura. Não é outro o meu emprego: narrar o alcance da vertigem e dos gestos mais cortantes. O narrador jamais será espectador de si mesmo, porém terá que iludir o suficiente para que a vida de cada personagem não lhe desaprove o sobressalto diante do espelho da cena.)

- Abraça tua mãezinha com força. Nada mais de ruim vai te acontecer.
Ainda havia incenso queimando. Por entre os dois corpos já não se sabia o que corria mais, lágrima ou suor, a cena consistida pela imunidade plena do sal, logo pontuada pelo invisível pleito da sede.
- Tonto. Que fazes aí todo vestido em cima de mim nuazinha? Deixa eu tirar essa roupa e te dar um banho.
Era ela mesma, inconfundível, virtuose da sedução, astuta por todas as partes, gozosa maroteira. E lá se foram nus em direção ao quintal. Banharam-se por boa parte da manhã no último dos tanques de peixes, por uma vez quase única. Coxas e pernas pontilhadas por acarás-bandeira em defesa de seu território. Também os amantes se beliscaram entre si, redescobrindo cada mínimo tecido esgotado. Batismo tópico. Repetidas vezes, até que cessasse toda vontade. Enquanto o resto da casa pranteava por seus mortos.



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