IV - ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS
21
O quarto
de Mãe Dolores arrumava-se de maneira incomum. Há dias eu não me aguentava,
corroído pela inexatidão, fuzilado pela estranheza. Com tudo de mim eu era
atraído por aquela mulher. E sentia-me como se arrastado para um ramo de abismos,
uma descendência de agonias. Seríamos todos ceifados por uma crendice. Há muito
a família já dava sinais de. Quando vi o quarto de Mãe Dolores tomando outro
vulto, enfeitando-se à revelia do hábito, temi ainda mais. Ouvi sinos e logo
pressenti decuriões encapuzados, o ar ondulando em incenso.
Apenas
afastara a mobília para um canto. Só então percebi que um largo cano de metal
varava o quarto de uma ponta a outra, na parede contígua à da cozinha. Ali
havia duas correntes. A nova decoração concentrava-se na anunciação de um rito.
Era um dois de novembro e graças à minha condição asmática eu seguia sendo
poupado das lacrimosas visitas ao mausoléu da família, no cemitério Batista.
-
Entra, querido.
Estava
completamente nua, vicejante, descrita apenas por uma jactância mística, o céu
em plumas de corvo, as letras através das quais percorremos salmos, um fino
bordado do mistério. Como pode ser tão lasciva e inóspita a um só tempo?
-
Quero te mostrar uma coisa, um guardado.
Um
ínfimo porão madeirado sob as mãos, miniatura de uma sala de ocultação. Caixeta
talhada em voluteados traços. Um dentro de penas tão múltiplas que disparatavam
qualquer olhada. Um rabisco do infinito das aves. Ao lado, outra caixeta, contendo
minúscula pedra. Qual o significado de tudo aquilo? Que amparo buscavam aqueles
símbolos diante da nudez luzidia de Mãe Dolores?
-
Não quero nunca mais te fazer sofrer. Tu és a minha pequena joia salva do mundo.
Quero que me prendas naquele cano e que me ajudes a enxotar a desgraça que
trago comigo, essa indesejável presença.
Eis
o que eu teria que fazer: acorrentar aquela mulher, escolher uma pena qualquer
e usá-la sobre o corpo desnudo, despertando-lhe o viço, até que provocasse a
sorrateira entidade, quando então, sem nada indagar, deveria apenas enfiar a
pedra na boca.
-
Tão simples…
Preparados
os apetrechos, a pedra aguardando a hora, nos iniciamos em um culto que jamais
imaginara. O riso afrouxando-se em contorcidas dobras do corpo, espasmos de uma
alegria provocada, cujas reentrâncias me eram assustadoras. Havia escolhido,
por motivo em tempo algum estimado, a pena de uma pomba-espelho, possivelmente
atraído pelas incisões violetas em negra lâmina. Não demoramos muito a sós.
Tinha que me controlar. A pretidão veio de vozes despejando insultos,
desamparos, abjeções. Pensei o pior que pude e tentei me ajustar àquele
patético clima de impropérios.
- Your mother is a fat
cow. All the women are here. Biblical flesh. Rotten flesh. Fathers and mothers
and sons and daughters, everybody climbing together for all the eternity. It
threads you in me, poor bastard, and you’ll have my past and my future in your
hands.
-
O que queres de mim?
Eis
o toque sublime da tontice. Um levante qualquer me demoveu de uma tarefa tão
simples: pôr a pedra na boca de Mãe Dolores.
- You shouldn’t ask me
anything. I’m your shade, I’m your intrigue, I’m your mother. Fuck my body.
You’ll never fuck my spirit.
Senti-me
inteiro enredado, limado pela vileza do rito, culpável. Como alcançar a
divindade e desarmonizá-la? Há momentos em que o ímpeto descrê de si mesmo.
Olhava a pedra ali aguardando por sua função.
-
Não és minha mãe…
-
Flesh is mother.
Dizia
isto e abria as pernas assediante. Queria meu gozo, a imagem sofrida, o salto
no impossível.
-
Não és nada. Não reconheço teu vulto. Não poderás jamais ser o que não aceito.
- Fuck my body…
Queria
representar-me por inteiro em seu jogo. Não sei que forças eu reuni para a
ruptura, possivelmente a maior delas: o abandono. Foi o que fiz, afinal:
entreguei-me àquela pedra inserida bem fundo por entre os lábios de Mãe Dolores.
-
Fuck you…
Bradava
com todo o corpo. E embaralhava os selos de seu abismo.
- …Noi prosciugammo intero le forze del
dio… Je n’écris pas mes viandes pour votre rise…
Engasgava,
tentava cuspir a pedra, contorcia-se. O corpo se debatia com tudo o que lhe era
possível.
- …Votre
doleur… Ich bin lhr Schmerz…
As
pernas iam ao mais alto, incertas, rasgadas. Peleja em seus tropeços o encosto
desgostado, ferido, decaindo.
- I’m your pain… Tengo el deseo de un
mundo sin recusas … As
sobras, as sobras de Deus…
-
Que Deus buscas agora?
- …Idiota senza cominciando…
E
desfazia-se, escrita mínima, sumindo, os vitupérios já dissipados, toda aquela
babel agonizante, a pedra embaralhadora de sentidos, a língua confundida, o
absurdo de ser todos contra um só, contra cada um. O suor fluindo por toda a
Mãe Dolores, um banho de forças.
-
Schmer…
Escoava-se,
não importando para onde fosse todo aquele dobrado da ansiedade.
-
Me abraça com força, meu pequeno.
-
Quem és?
-
Não te assustes mais, meu menino…
A
mulher estava ensopada de suor. Pequeno Ansioso chorava, chorava, como se
diante de um desejo inacabado.
-
Um beijo. Vem me dar um beijo, vem.
Deixou-se
então acolher entre os seios de Mãe Dolores, soluçante.
-
Me tira dessas correntes…
(Alguma
conclusão diante de todo aquele horror? Não era boa hora para isto. As
conclusões vão se dando com o tempo. Vão também se perdendo, e raramente aceitamos
que de nada valem. Apenas a mais vulgar literatura explica-nos o que foi fortemente
expresso por aquele corpo decomposto em falas alheias. Ermos da crendice? Com
que espécie de vitalidade um rosto se oculta por trás de seu rosário de falsa
moral? De que se ocupa a beleza quando não nos recebe em sua casa? Eu preferia
o gosto do puro cansaço, o desuso de certas figuras de linguagem, a morte de um
ente querido. Deixo que o abismo me tome pela cintura. Não é outro o meu
emprego: narrar o alcance da vertigem e dos gestos mais cortantes. O narrador
jamais será espectador de si mesmo, porém terá que iludir o suficiente para que
a vida de cada personagem não lhe desaprove o sobressalto diante do espelho da
cena.)
-
Abraça tua mãezinha com força. Nada mais de ruim vai te acontecer.
Ainda
havia incenso queimando. Por entre os dois corpos já não se sabia o que corria
mais, lágrima ou suor, a cena consistida pela imunidade plena do sal, logo
pontuada pelo invisível pleito da sede.
-
Tonto. Que fazes aí todo vestido em cima de mim nuazinha? Deixa eu tirar essa
roupa e te dar um banho.
Era
ela mesma, inconfundível, virtuose da sedução, astuta por todas as partes, gozosa
maroteira. E lá se foram nus em direção ao quintal. Banharam-se por boa parte
da manhã no último dos tanques de peixes, por uma vez quase única. Coxas e
pernas pontilhadas por acarás-bandeira em defesa de seu território. Também os
amantes se beliscaram entre si, redescobrindo cada mínimo tecido esgotado.
Batismo tópico. Repetidas vezes, até que cessasse toda vontade. Enquanto o
resto da casa pranteava por seus mortos.
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