domingo, 26 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo VI | Parte 32




VI - INVISÍVEIS TRILHAS



32

Soçobrava pela casa imensa. Vário em tanta angústia. Não havia beleza alguma em todo aquele rastro de ausência, mesmo que sempre soubesse que um dia não teria mais seus parceiros de abismo.
- Compartilhamos um mesmo vazio, Pequeno. Não passo de um desmiolado. Tu não és mais que uma criança. Só agrado a alguém se me desfaço do que mais prezo. Um dia terás que deixar para trás tua maior riqueza.
Andava distraído, por vezes estranhando o caminho, as invisíveis trilhas que havia demarcado em todo o território. Um mapa secreto mesclava uma casa a outra. Logo o cenário se desfaria, seu coração não lhe dava outro sinal.
- Já começaram a morrer meus assuntos. Antes se foram tio Domênico e tio Eudoro. Agora foi a vez do Coronel e de uma avó paterna que morava em outra cidade. Eu a tinha visto uma única vez, quando aqui lhe trouxe a morte de meu irmão. Todos a achavam uma mulher rude e enjoada. Lembro-me da cara com que me olhava, como se odiasse a existência de livros no mundo, e de alguém que os lesse. No dia de sua morte, a casa encheu-se de parentes. Vieram todos falar com o pai, dar-lhe pêsames. Por que não se visitam em nome da alegria?
Pequeno Ansioso acostou ao lado da porta do quarto de Mãe Dolores. Não havia mais nada ali. A porta aberta revelava o vazio refletido em seus olhos. Sabia-a vulnerável, desancada pela boa fé.
- Menino lindo, quero achar tua raiz, chafurdar em teu bosque. Quero armar uma tenda no centro de teu ser. Ficar ali por uns dias, depois sumir, feito um enxame satisfeito.
- Não foi o que fez agora?
Prometeu a si mesmo jamais chorar diante de uma ausência. A vida teria que ser preenchida por todas elas. Sabia que teria muitas, que se multiplicariam como os céus. Nas noites seguintes à morte de Mãe Dolores, acordava assustado e perdido de toda linguagem. Saía da cama em silêncio, a caminho do quarto esvaziado. Deitava ali no frio chão e exumava sua tristeza.
- Não chore. Ela quis que fosse assim.
- Quem fala? Quem está aqui?
O menino tremia por dentro. Não tinham sido poucas as visitações de espíritos em seus dias com Mãe Dolores.
- Te acalma. Sou eu.
Como podia reconhecer? Nas poucas vezes em que vira o irmão ele estava sempre no berço. Tinha quatro anos menos. Não podia andar ou falar. Quem estava ali em seu lugar? Ou já estava indo de vez? O morto acaso recupera os sentidos perdidos em vida?
- Não te dizem o que houve. A mulher se matou. Tomou todos os meus remédios. Não tive como impedi-lo.
Desde aquela noite encostava-se por horas no berço do irmão. Passava-lhe a mão por todo o corpo, como se tateasse incógnita figura, um mito, uma representação qualquer. Era como se escalavrasse sílaba a sílaba toda uma pele à procura de sinais. Dias e dias. Não fez outra coisa desde então. Uma manhã acordou com rumores, ouvindo uma tia quase sussurrar:
- Não deixem Pequeno saber…
- Como esconder de uma criança a morte de seu irmão?
Seguia caminhando pela casa. Um tio levara todos os peixes embora. O quarto escuro perdera o cadeado. Entrou ali uma ou duas vezes, mas não se demorou. Havia um insuportável cheiro de ração de galinhas. Portais confusos. Que invisível trilha enlaçava a rua dos Oitis à rua do Parque? Por uma vez primeira passou a pensar no traçado daquele suspeito caminho. Lembrou-se de uma distância de cinco quadras entre uma casa e outra. A casa da avó ficava diante do Parque das Sombras, de onde recorda algumas raras fotos suas ao lado da mãe. Da outra casa a memória lhe acena com um incêndio havido no posto de gasolina à esquina do Bulevar do Livramento, onde o pai deixava o carro guardado  à noite. Havia algo de subterrâneo que fazia com que não percebesse as idas e vindas de uma a outra morada. Algum dia chegou a duvidar que fossem mesmo duas casas.
- Hoje veio alguém ver a casa.
Ouviu as mulheres falando. Lembrou-se então de Alfredo Aquilino. Toda a sua vida estava sendo povoada por pequenos vazios. Uma intrusão de vazios. Um discurso.
- Um dia não me deixarão mais vir aqui. Os irmãos me julgam inconveniente. A família me quer mesmo louco. Estou escrevendo uma novela sobre todos eles. Dirão tratar-se de uma lorota. A família não passa de um baile de máscaras. Para eles serei sempre o louco, o que garante a sanidade de todos.
E não veio mais o tio, desde aquele engodo das enumerações. Tiraram dali a cadeira de balanço. As palavras estavam fora de alcance. Também a plenitude. Tudo coincidia com a venda de uma casa e o destino incerto da outra. Um anuviado lacre em um trecho da memória.
- A família acaba conseguindo o que bem quer.
O garoto caminhava atônito, esbarrando em alguns móveis, confundindo as salas, dando pela falta de portas, o obscuro margeando a andança, perturbava-se, entrado em ofegantes resmungos, suores, o sono atormentado o ameaçando com visões.
- Mãe!
Um grito seco, mal arrancado da garganta. Senta-se na cama. A noite silenciosa, inapelável em sua escritura. Pequeno Ansioso tateia os novos sendeiros da casa. Procura a biblioteca. Não a encontra em parte alguma. Não há um único livro em todo o lugar.
- Livros que fazem chorar são um tormento indesejável.
Nada se torna remoto se não tomado para si por alguém. Não há dúvida de que os céus sejam múltiplos. Mas temos que torná-los remotos, para que novos céus se entranhem em nossa memória. Sentou-se no chão. Lembrava-se de Mãe Dolores e Alfredo Aquilino. Jamais estiveram em lugar algum. Não houve tempo formulado em seus encontros. Tampouco estiveram juntos em uma mesma conversa. Cada um cuidou de si como um símbolo mergulhado em seu íntimo. Em qualquer clarão a noite surpreende e se dá por inteira. Não havia propriamente uma noite, um personagem, uma cidade, uma novela. Então o que faria de tudo aquilo?
Esteve assim por dias, estancado.
Irresponsavelmente criamos, antes de buscar sentido para a criação. Deus, Homem, Poema. Não importa qual entidade. Não criamos senão ansiedade sobre ansiedade. E erguemos um panteão abarrotado por tudo o que não soubemos ser, um abrigo de nossa inominada condição. Noites frias, filas da sopa, do agasalho, do leito. Não somos o que já disseram, o que pensam de nós. A cada instante repetimos a mesma e mesma e reiterada fala. Nada no homem necessita de história ou sublimação. Esgota-se, rende-se, entrega-se. Jamais consegue entrar em entendimento com a memória. Não há um último fogo a ser tocado, uma última chama a nos devorar. Olhando a paisagem queimando, vemos tudo em fogo, menos o céu. O que falta?






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