segunda-feira, 20 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo IV | Parte 19



IV - ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS


19

Mãe Dolores agitava-se fagueira pela casa. Cuidava de tudo. Seu íntimo lapidava com sobressaltado tino uma fonte de inquietudes. Ou estava ali para ser o farol de todos nós. Passava as mãos pelo corpo inteiro. Às vezes agarrava uma parte do vestido, sôfrega, quebradiça, como se exumasse algo em si. Era uma mulher de desvãos, dentro e fora, por todas as estrofes mínimas do espírito. Pulava de um ponto a outro de sua vida. Ria, dançava, faceira e contagiante. O que havia de errado ali? Em qual labirinto se dá a litúrgica composição dos seres?
- Menino bobo. Pensa que estás aqui. Sabes o nome deste pintinho?
Descarnava a sofreguidão de Pequeno Ansioso.
- Parte alguma.
Me importunava desconhecer a condição de seu pensamento. Decerto era minha a insuficiência. Onde então aquela mulher existia?
- Posso morder com força?
Os dias não suportam a estabilidade, tremem assombrados como se diante de um monastério de resignações. Mãe Dolores emaranhava-me os dias. Minha vontade de ser treinava com o imprevisível e o improvável. Naquela idade tudo me parecia vir daquelas coxas. Na entranhável forquilha dormitava toda a realidade alcançada, furtiva e fustigada.
- Uma porção de amor pode fazer um homem acabar com a vida. Um pensamento forte, o cheiro bom que tens em teus dedos, uma sentada, umas palavras, um jeito de atrair o danado, pronto. Eis o homem aqui em minhas mãos, me amassando e amando.
- Sem nem saber disto?
- Não há consciência no amor, docinho.
Enganava a si mesma, não havia dúvida. Mas qual a inspiração do disfarce? O menino sondava a fixidez dessa abstração, com o esmo possível de percepção que uma sequência de cenas propiciava. Mãe Dolores surgia desaparecia ressurgia a um diminuto estalar do receio de ser compreendida.
- As pessoas se tornam loucas, confusas, incertas, erráticas, espantosamente anônimas. Todos os desvios são dados como inevitáveis. Até parece que o único sentido alcançado pela experiência humana é o inevitável. Então por que se queixam de seus erros? Por que se julgam uns aos outros, solapam tramas, esmiuçam pretextos? O que são os acessos de Deus? Crime, insanidade, baixeza, intriga, insegurança… Não. Apenas a agulha do inevitável. Beleza, amor, entrega, renúncia, ascese… Nada. A droga do inevitável. Deus é o grande tormento? O não-significado sagrado de todas as coisas? O momento em que não importam tempo e lugar? …mas se Deus rejeita toda compreensão…, de seu poder ou de sua insuficiência! Deus acaso não combate a si mesmo? Ou não passa da bosta do inevitável, que não se permite ser nada?
Mãe Dolores mal cabia no olhar. Naquela manhã estava tomada de uma entranhada e confessa confusão. Seguia falante, da cozinha ao quintal, filosofava aos tropeços. Eu a seguia, como um coroinha capturado pela falta de fé. Subimos pela árvore e fomos dar no telhado acima da lavanderia. Não parava um minuto de falar:
- O que tenho sido para Deus não é o que tenho sido para mim. O assédio de tantas vozes que querem me afastar do que sou, qual deus pode querer isto para si?
Agarrou-se a mim, de súbito e quase em prantos, o rosto se desfazendo. Parecia uma mulher perdida de si, sem mais uma gota de nexo. Quase sempre eu tinha a dificuldade de saber se estava com ela ou com outra. Aquela era a primeira vez em que me parecia não haver ninguém. Nenhuma delas. E do olhar extremamente vazio saltou o gesto que me empurrou dali do alto. Ao inclinar o corpo, já sem apoio algum, senti umas mãos firmes agarrando-me pelos pés. Me vi dependurado e ao resto do mundo ainda mais desalinhado do que sempre me parecera.
- Quantas Dolores em mim Deus quer para si? Não tenho tantas assim para dar. Quero amar um homem e até morrer dos caprichos desse amor. Quero dar voltas e voltas e estar sempre amando.
Seguia ouvindo aquela novena de tormentos, de ponta-cabeça, os braços ridiculamente pendidos, combinando apenas com uns clamores desentoados:
- Mãezinha, me tira daqui!
No fundo, sabia que não havia nada ali para me salvar. Olhava para o chão e pressentia que a altura não seria o suficiente para me matar. Vinha-me à mente as trágicas sequelas de uma queda tão idiota.
- Não quero ser o que queres de mim! Te afasta daqui! Deus, o que se passa…!
Mãe Dolores urrava, chorava, agredia o invisível, bradava, mas felizmente não me largava os pés. Aos poucos, bem aos poucos, foi se recuperando, retornando e percebendo que estava com minha vida em suas mãos.
- Ah meu menino, eu disse que jamais te faria mal. Como posso ter chegado a isto? Não posso com…
Antes que concluísse ou caísse em um ardil qualquer da aflição, beijei-lhe os lábios. E novamente beijei-lhe os lábios. E uma vez mais lhe beijei os lábios. Era ela que estava ali, rediviva, lambuzada de irreflexão. Com os lábios prontos para serem beijados.





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