IV - ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS
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Pequeno
Ansioso detestava a escola. As horas passadas ali significavam livros a menos
lidos na biblioteca do pai. Entre as centenas de livros e revistas, sem que o
soubesse, ia avolumando na memória os devires essenciais da existência.
- Hora da aula, Pequeno.
Adoecia. Faltava a respiração, murchava os olhos, caía de si
com jactanciosa preocupação. A leitura lhe era uma melhor comunicação com o
mundo. A perplexidade do dia era um abismo sem interesse em si mesmo. Nas
leituras firmava uma dedicação potencial pelo desvão das coisas.
- Meu filho, seus amigos perguntam por que não vai à escola,
por que não brinca na rua…
- Quem fala?
- Sou eu, Pequeno.
- Mãe?
- Sei que estive pouco contigo. Teu irmão requeria cuidados
intangíveis. Não podia ser de outra forma, meu filho. Não elegemos sequer a
dilaceração. Parece que não damos um passo à frente, que tudo é reserva e
quitação. Cuidei de um filho que seria perdido, ao passo em que lentamente
agora perco outro do qual deveria ter cuidado. Nem sei ao certo com quem estou
falando. Uma mãe não pode ser rigorosa com sua honradez. Rendemo-nos à
estupidez mordaz do instante. Creio que somos vítimas plantadas, deve ser isso.
- Sabes tocar piano?
- Não, não quero falar nisto.
- Tocas ou não?
- Não, meu querido. Não toco mais. Não posso tocar mais nem
mesmo no assunto.
- Então não vou à escola, nunca mais.
- Não faças isto comigo. Sei que não tenho sido boa mãe.
- Nunca mais.
- Teu pai já volta de viagem, Pequeno. Terás que seguir em
teus estudos.
- Nunca…
- …
O diálogo era mesmo improvável. Pequeno Ansioso agarrava-se
às páginas de Swift e desconhecia a mãe surgida à frente. Nunca houve aquela
mulher, porém a desejou como o que de mais sagrado poderia haver na vida de uma
pessoa.
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