sábado, 25 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo VI | Parte 28



VI - INVISÍVEIS TRILHAS


28

Uma entrada ali no santuário, quase sempre uma experiência falida. Cheguei a pensar que não buscava senão o destrutível. Recordo páginas de exultante felicidade, uns ensinamentos de eficácia em inúmeras matérias, amores confessos, solidez projetada e refletida. Eram centenas de livros, palmos completos percorridos por um mesmo autor. O pai colecionava notícias de guerras, empilhava jornais, livros, mapas de cerco, anotações estratégicas.
- No avanço conta sempre a insanidade do espírito. No recuo, salvar ao menos o corpo, ou sua imagem. Esta é a consciência da guerra, não mais que uma das formas de anulação do ser.
Os manuais de guerra, contudo, não me despertavam maior interesse do que as leituras do Paraíso Perdido ou Macbeth, trechos da mitologia germânica ou das sagas de dizimação das tribos indígenas na América do Norte.
- Toda a miséria do mundo é uma ação projetada. Em alguns casos, por descuido. O bom de uma guerra é seu anúncio, a declaração de uma atitude. O mundo perde em honradez quando não há guerra anunciada.
Não creio haver travado nenhuma guerra com o pai. Os livros lidos ali jamais foram comentados. Quando raramente estava em casa e dava por sua avidez em devorar súmulas estratégicas, estranhava que não conversasse comigo sobre todos aqueles livros.
- A arte nutre princípios pendulares. Um leque de fraudadas minudências.

(- O que concluir daí?)

- Quem fez tal dispersiva indagação?

(- Não sei o que diabos imaginava que o pai pudesse significar em tua vida. Naturalmente há um encanto propício ao desejo. Aquela verborragia de que tudo se dá em nome do desejo. E quando as coisas não se dão bem de acordo com o desejo? Aí vem o derrame da frustração. Eu te amo. Tu não me amas. Tu és meu desejo frustrado. Decerto serei teu amor incompreendido. Uma fábrica de sandices. Teu pai sonhava com uma purificação sob decreto. Toda a merda da humanidade limpa amanhã bem cedo, antes que a cidade acorde. O pai não possui uma ideia exata do desdobramento da vida em si mesma. Talvez porque não a arranque das entranhas, segundo a limitação do entendimento do que carrega em si mesmo. O pai é uma grande aberração. O pai é tão pequeno que faz com que a mãe pareça imensa.)

O tempo alimenta sua semelhança e distrai as exumações. Os livros nos elegem, não há dúvida. Um outro santuário esboçava-se a cada livro relido. Nas tardes de domingo, o pai abria a janela que dava para a rua e punha a todo volume Nat “King” Cole ou Elizeth Cardoso para tocar. Aquela música varria todos os livros para um canto. Não creio que pensasse em mim. Na verdade jamais trocamos uma única palavra. O pai com sua música e seus livros fez de mim um homem estranho por muitos anos, alguém que contrariou a própria natureza e não quis tocar em nada. Até que um dia o filho foi tomado de assalto: o pai não faz o filho ou o filho mal cabe no pai? Chão pisado, marcado. Não há como fugir do passo adiante. Não é outra a sofreguidão da semelhança.
Sem que nos encontrássemos nunca, fomos nos completando através das leituras.






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