quarta-feira, 22 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo V | Parte 22

V - ESCURIDÃO NUMINOSA

22

Ouviu a campainha tocar ao longe. Buscava refúgio sempre nos livros, uma intrigante caravana a prover-lhe os treze anos de vida. Cedo ainda para se investigar a forma última das coisas? Corre-se o risco de espatifar-se bem diante da própria forma, sem tocá-la por um momento sequer, como se às voltas com uma miragem. A forma última das coisas reside em seu contrário.
Era mesmo a campainha. Pequeno Ansioso ia encerrar a leitura e caminhar um pouco pela casa, fazer a ronda pelo exterior insensato da vertigem. Aqueles últimos dias foram de uma angústia tortuosa. Desfazia-se na resolução de uma ínfima equação diante do abismo: por que o viço de Mãe Dolores havia perdido os traços, a nervura do encantamento, desde que as manhãs se fizeram sem a presença de Alfredo Aquilino? Indagava-se:
- O que não se tem será sempre um signo do desfalecimento? Uma condição desfavorável acaso não se deixa alimentar pela outra face? A partir de quê são escritos os livros?
Perambulava pela casa, envolto em reflexões. Próximo à cozinha, diante de um espelho, a esmerar-se no penteado irrepreensível dos raros fios de cabelo, Alfredo Aquilino postava-se imperioso em sólida displicência acerca do que se passava à volta.
- Tio!
Jubiloso aproximou-se, quase em êxtase redivivo.
- Pensei que não viesses mais. Estava a pentear os cabelos matutando sobre o que fazer desta manhã.
Pequeno Ansioso debatia-se, tentando escapar do naufrágio. Alfredo Aquilino desviou o olhar em direção à velha cadeira de balanços. Recuou e sentou-se.
- Estive escrevendo algo.
- Disseram-me que estavas doente.
- Quem sabe doente de Deus…, de seus gritos em minha cabeça. Doente da intolerância de Deus… Certas armadilhas demoram a ser desarmadas. Temos que nos deixar capturar, para então destruí-las, quando se tornam confiantes e displicentes. Assim parece ser com este senhor que me atormenta. Talvez não passe de um ogro errante ou de um matuto cheio de si. Já imaginou descobrir-se cercado de absolutamente nada? Nada, nada mesmo. Estou bem aqui e não há nada ao meu redor. Não posso perder-me ou perder o que seja. Não posso salvar-me ou salvar coisa alguma. Simplesmente não há nada para se fazer. Esta é a prestidigitação em que se agarra este mago ordinário, entregue a truques banais, tramoias sem substância.
- O que estava escrevendo, tio?
- Nada. Inevitavelmente nada. Fiquei pensando em como ultrapassar a lei de Deus. Arranje alguma coisa para anotar o que vou dizer, rápido, antes que passe.
Pequeno Ansioso apressou-se em criar as condições para o êxito do acaso.
- Na vida não há limites para a dor e não há nada que não esteja em jogo. A própria vida se põe em perigo e delicia-se com desregramentos. O infortúnio não é senão um instante, uma das possibilidades do jogo. Anotou?
- Pode di…
- …estou para estourar o crânio do juiz. Não quero unir-me a seu desapego pela vida ou tornar-me redutível a seus humores. Vacilo. Como se pode rapinar desejos alheios! Não há limites para o próprio desejo. Posso amar, apaziguar-me, debater-me em agonia, rir a consumir todo repouso, desvanecer-me. Mas dedicar-me a afanar o desejo de outros…
- …é isto o que Deus faz?
- Escreve: uma mulher reencontra-se com um velho conhecido. Com ele está um companheiro de aventuras. Os dois estão de partida para uma longa viagem. Embora surpreendida pelo convite, a mulher aceita seguir com ambos. Em todo o percurso eles se descarnam, por dentro e por fora, como forma de questionamento daqueles preconceitos mais agarrados à pele do tempo. Além disto, imaginava pôr tudo isto em verso, dando ao texto uma indispensável tensão trágica. Pensava em montar um triângulo amoroso, armado a partir de uma ideia difusa que cada personagem tinha de si e dos demais. A vida não mais entendida pelo prisma dual, buscando uma terceira face.
- Anoto isto?
- Não. Não mais. Toda viagem é longa, algumas intermináveis. Os dois rapazes românticos queriam o mesmo de sempre: descobrir o mundo que traziam dentro de si. A garota detalha os bastidores dessa aventura. O desejo reparte-se em gênero ou em grau? Era o que tinha em mente. Combinar gênero e grau em uma aventura de adolescentes.
- O que houve, tio? A avó já virá anunciar o almoço. Conta o que houve com tudo isto.
- Dava uma caminhada pela praça e peguei um jornal para ler. Sempre leio os jornais na banca do Oswald. Tinha ali uma entrevista com meu irmão, em que falava de um novo livro. Eu havia lhe contado minhas ideias, havíamos conversado sobre alguns planos. Confidenciou-me umas aflições em torno de suas manobras literárias. Arrisca-se demasiado no arranjo que faz para a obtenção de prêmios. Endivida-se a dar festas. É um parasita bastante empenhado. Sempre o recriminei por isto. Agora o leio, insolente, a falar do novo livro. Tudo me parecia muito próximo, estranhamente íntimo. Falei com o Oswald: “já tens o livro?” “Sim, está aqui.” Li cada palavra. Arrebanhou as ideias, porém desconhecia que o cercado, a demarcação de território, possui vários significados, entre eles o da usurpação e o da conquista. Não escolheu nada que lhe desse muito trabalho. Pura e simplesmente apossou-se de meus rabiscos mentais, certo de que a arte é feita tão-somente de ideias. Salafrário e bobo.
- Onde está o livro?
- Deixei com o Oswald. Era dele. Está certo que as ideias não têm dono. Pensamos e pensamos. O que realizamos é forma sobre o pensamento. Ação é forma. Se abro um jornal ou converso com alguém na rua, recolho ideias e dou-lhes forma. Somos todos ladrões uns dos outros. Perguntei ao Oswald. “Acaso sou um ladrão?”. O coitado não soube o que responder. “Estou sendo roubado, Oswald. Isto faz de mim um instigado ladrão?” Entendeu menos ainda. Me entendes tu?
- Entendo que Deus não é Deus. Entendo que não consegues descobrir um grito. Entendo que o tio Anselmo publicou como dele uma ideia tua. Entendo que matarás a ti e nunca a ele.
Sem o saber de todo, Pequeno Ansioso retirava o esmalte do insustentável enigma.
- O tio irá matá-lo?
- Não tenho virtude suficiente para isto.
- Bater nele?
- O infamante acaba sendo o infamado. Não… Sim… Não consigo pensar em bater em ninguém… O que uso para matar uma pessoa?
- O tio pode pedir a alguém…
- Posso escrever tantos livros, ter tantas ideias.
Calava por segundos, como se articulando novos gestos, convocação cênica, tudo em indisfarçável sigilo.
- Falta uma música aqui. Minha irmã não põe uma música para nós. Não deve fazer ideia das ondulações sonoras da vida.
- Quem dá por conta disto?
- É verdade. Que importa se um irmão me roubou a ideia de um livro?
- Nã…
- Sim, meu garoto animoso. Tudo deveria ser um reflexo de errâncias. Deveríamos aglutinar beleza e horror a cada mínimo gesto. No entanto, tomamos de nós mesmos, a todo instante, o que ainda não conquistamos.
- E o que aprendemos com os dias…
- …o que se aprende, de fato? Não vivemos mais em função de uma constatação do que não sabemos? Bosta, o que deu em Anselmo?…
- O tio Anselmo precisava disso?
- Quem precisa provar o que é? O idiota acorda destinado a ser apenas uma insignificância qualquer. Imagine alguém preparando desde a noite anterior um assalto. Qualquer ladrão quer apenas usufruto de algo. O mundo está aquartelado por ladrões. Não há mais nada que se pense ou faça que não possa ser pescado por alguém ou, o que é pior, usurpado por uma central motriz que se considera uma revigorada casa de ilusões. A circunstância foi convertida em um estado perpétuo de fraudes. Sou preciso em meu esquema de alucinação, assassínio ou direção de uma peça de teatro. Não busco uma visão plena do mundo, mas antes um emaranhado de tramas, onde um equívoco justifica o outro, uma cadeia de fraudes.
- Onde matar é natural?
- Matar é natural. O que não é natural é a pormenorização da morte. A morte feita, a morte aparente, a morte reflexa.
- Lá vem a avó.
Não houve como seguir no assunto. Alfredo Aquilino demorara-se bem mais no encontro permitido com o sobrinho. A irmã declarara ao médico que ele se sentia muito bem ao balançar-se ali e contar histórias ao menino. De retorno após uma larga ausência, em função de crise que o fizera amordaçar o carteiro no banheiro e fugir disfarçado de uma clínica, não parecia propriamente um dissidente da razão, mas antes alguém afligido por seus conceitos irrefutáveis.
- A loucura não é uma forma da beleza. Nem mesmo é seu fulgor.
Não havia como escapar. Era quase meio-dia.
  




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