V - ESCURIDÃO NUMINOSA
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Nada do
que houve aqui seria aceito como um último encontro entre Pequeno Ansioso e
Alfredo Aquilino. Como afastar o havido de seu contexto? Dizer-lhe apenas “isto
se dá” e expedir outro assunto? Quando a dor é flamejante ela vulgariza a
moral.
-
Cada dia me é mais difícil. Anselmo se esmera em me mortificar. Pode descrever
cem espécies de monstros em que me quer converter. Sei que pode, e já tenho
pela casa de cinco ou seis dúzias. Quer um monstro que procure, outro que se
arraste, o adorador de sofrimentos, um simplesmente destruidor, um monstro
desmemoriado, outro que se orgulha de sua voracidade, o que se disfarça e a
todos confunde, um que marca suas vítimas, outro que não faz nada sem
testemunhas, o que fotografa sua coleção de peles humanas, um. Não passa de
mórbido prazer enumerativo. Esquece que também posso divisar o refúgio de suas
fraudes. Sou mil vezes mais o que ele pode ver em mim, e cada um destes pode
vislumbrar as centenas de vezes em que o poeta mal consegue ser a própria
sombra.
Tudo aquilo requeria uma pausa, um átimo, para que não
desatinasse de vez. Alfredo estava transtornado. Era uma manhã de
segunda-feira. Na tarde do domingo ouvira a avó ao telefone retrucando algo em
torno de uma visita que Anselmo havia feito a Alfredo. Os irmãos não leram
fraternidade alguma (nunca) um na palavra do outro. Não coube hipérbole ou
elipse redentora. Tampouco sobrou nada por decifrar. Não houve como Anselmo
agir apenas em função do texto, segundo um velho hábito.
- O que houve, tio?
- Jamais pude criar-me em paz. Tenho carregado
sempre a sombra marcada de um reles versejador. Se digo “não chorem por mim,
pois estou sempre indo”, ele transcreve em medíocre palimpsesto: “não chorem,
pois estou indo”. Não tem sequer a medida do que rouba. E me persegue por isto,
por não saber dar ao texto um conflito indispensável. Diz que sou imoral, e me
classifica, me inclui entre criaturas desequilibradas, intrigantes, machucadas
pela impotência.
Agitava-se na cadeira. A irmã indagou se havia algo de
errado. Pequeno Ansioso pôs-lhe a mão no braço e disse à avó que tudo estava
bem. Sabia que a discussão com Anselmo dera em sopapos, rapidamente controlados
por enfermeiros.
- Quantos números pode arrancar de mim? Quantas máscaras,
quantos infelizes disfarces da própria imagem? Olha para mim como se para si
mesmo. Não quer de mim senão o que não tem. Sou a refeição diária desse
demente. E se pinta mal, ainda que seguindo o modelo, tirando a lápis sobre o
papel manteiga. Vinga-se então transferindo para mim a sorte que lhe foi
reservada. Esquece que não há sorte reservada. Rasga-se um texto em plena
conversa. Nenhuma utopia resiste a pormenores.
Ia falando e se agitando ainda mais. A avó se aproximara.
- Tens que ser mais forte que ele…
- Não me deixo apanhar como em uma festa. O que estou…
dizendo? Uma roupa para vestir? Sobra. Um livro? Já sabes disto. Uma compota de
doce? Sinto-me encantado pelo permitido. Há irmãos que não vejo há dez anos.
Fogem até do assunto os demais, quando indago sobre eles. Uma girândola de
enganos. Tornaram-me perpetuamente satisfeito no domicílio da classificação. O
que escrevi? Sabes o que é o cúmulo de alguma coisa? … Domínio é perda. Não
estão me dando nada deles. Estou conquistando a partir do momento em que me
tomam. São convenientes. Sou apenas o que sou.
Erguia-se da cadeira, a mão esquerda enfiada no bolso,
sacando o pente. A irmã reconhecia os sinais de crise. Penteava mecanicamente
os cabelos.
- Não há ordem construída a partir da perda. Tomam o que bem
querem de nós. A linguagem confessa a impossibilidade diante do real. O que
tenho escrito? Uma essência desfigurada duplamente pelo medíocre Calamares, o
poeta querido por todos, autor de desqualificadas momices, de molambos
estéticos, rasuras, farândolas em remendos… Que grande porcaria estúpida de
longevidade busca o homem se não suporta a si mesmo? E quantos monstros sou?
Fixava o olho na irmã, quase explosivamente, enquanto seguia
indagando:
- …o monstro que decepa enfermeiras, que ilude as próprias
irmãs, o que negocia com chamas, que força os homens ao luto, o antigo pedinte
de sacrifícios, que mata nem que seja de desgosto, o que recolhe as atas de
todos os conclaves, que entorpece crianças, o estridente garanhão de lâmpadas…
Penteava os cabelos e seguia naquela cantilena sem fim. Minutos
depois que a avó discara um número o toque da campainha assombrou a casa de um
branco temível. Eram três os enfermeiros que vieram buscar Alfredo Aquilino.
Não deu, contudo, o mínimo trabalho à abjeta operação.
- …o que ensaia proporções, que se julga célebre, o
irreconhecível, aquele que se compraz simplesmente em forçar alguém a recuar, o
habilidoso que faz com que todos desacreditem em suas ameaças, o que em momento
algum solta as rédeas…
Fiquei comigo, sem um pleno termo de vida. O que vi ali me desabrigou
de tudo o que me… ia dizer “me ensinaram”… o que aprendi. Serão assim todas as
famílias? Não? Haverá uma ou outra que saiba apagar as pistas até mesmo internamente?
- …o que torna o impossível um joguete, o que não dispensa
uma criancinha, o obscuro que favorece outros crimes, o deus esverdeado
cinzento sorridente venerável que não passa de um filho de uma porca, o
sucessor de todos eles…
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