V - ESCURIDÃO NUMINOSA
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As
histórias são escritas pelas mãos do egoísmo ou da piedade? Que maldita falsificação
do ser buscam atrair? São a imposição de algo ou a exibição de queixas? Distribuem
papéis e aspirações, enovelam tramas, desencadeiam complexas semelhanças. Levam
o tempo inteiro a deduzir ou comentar que a vida era pouca ou errônea ou
impossível. Como se tudo não passasse de um resultado desta ou daquela simulação
de tramas, sua conclusão e psicologia apregoadas. “O homem não passa de uma
história, de sua forma literária de ver o mundo, obediente a seus caprichos,
emparedado por ela, atormentadamente previsível”, dizem umas. “Não faz nunca
nada por si, pela existência entre homens”, concluem outras. O que diz Hamlet:
“vejo a morte iminente de vinte mil homens que, por uma fantasia e um jogo de
glória, marcham a caminho de suas tumbas”. Trata-se aqui da história do homem.
O personagem nos faz entender que estamos dentro e fora de cada um de nós, fora
e dentro de cada história. A história do homem só existe por ser a história do
indivíduo que não perdeu a humanidade.
– Não sei desde quando me chamam Dolores. Há muitas
histórias em minha cabeça. Sinto-me desatinada por elas. Jamais soube de meus
pais. Não localizo a vontade de viver senão em meu sexo. Creio que é o que me
faz gostar de mexer todo o corpo, um arrepio de dançar. Nunca penso na
realidade ou na alucinação. Há sempre uma música tocando em meu juízo. Gosto de
ouvir o menino lendo aquelas histórias. A música pára um pedaço, mas logo fico
pensando em pegar nele.
As histórias ruins denotam acaso uma falta de vontade do
homem em relação a si mesmo? A perversão torna os livros juízes do homem,
graças aos seres monstruosos que povoam os relatos?
- Não me sinto diferente de outras mulheres. Nem parecida
com elas. Às vezes me pego surpresa pela exatidão com que algumas buscam
cumplicidade. O mundo é tão esquisito para que alguém se sinta igual a outro
alguém. O mundo parece uma fábula. Uma composição de muitas vozes. Uma peça com
mais personagens do que atores. Não sei quantas imagens de Deus consigo
representar. Não damos nunca as cartas. Dizem que matei três pessoas. Não julgo
certo ou errado. Eram personagens deploráveis. A esposa de um deles até me
agradeceu, a seu modo, acobertando o crime, imaginando uma nova vida expressa
no olhar e longe do infortúnio compartilhado com o cafajeste do marido. Deveria
me sentir bem. No entanto, não tive consciência do momento daquelas mortes. Não
sei de onde vêm tantos espíritos. Não os procuro. Tenho minhas rezas, pedaços
de crença, um naco de uma e outra fé.
Rimos ou desacreditamos das histórias. Porém não fazemos o
mesmo em relação a nós mesmos. Por mais que nos identifiquemos com o personagem
de uma comédia, não cruzamos nosso olhar com o da imagem ao espelho e dizemos:
- quão patético somos!
- O meu menino me despertou uma ideia de personalidade.
Queria descobrir a si mesmo através dos outros. E para tanto os outros precisam
existir. Pequeno Ansioso me ensinou a ser para que assim se confirmasse a
própria existência. Foi quando percebeu que eu fugia de minha imaginação, que
não havia constância em mim.
O que são as coisas que se passam na vida de cada um, senão
um resíduo do entendimento com o mundo, um fragmento da aflição diante do
desconhecido, partícula da obsessão por desvendar o improvável, um cadinho de
petulância diante, a soma de tudo isto? As histórias, por melhores que sejam,
não passam de. O mesmo se dá com quem nos conta cada uma.
- Sou agradecida a Pequeno Ansioso por haver me descrito a
bondade do mundo. Estou queimando de formas que não se assemelham entre si, que
não escolho, mas que me recolhem. Sinto-me como alguém sem biografia. Menos que
um demônio inferior. Por mim mesma não chegaria jamais à boca do Inferno. Por
um inóspito amor próprio despertado pelo menino perdi minhas vozes, as vozes de
outros em mim, e agora tenho que suportar o peso dessa ciência de tudo à minha
volta. O próximo passo da aniquilação será convencer-me de que não posso mais
ser personagem. Não haverá mais história suficiente em mim para isto. Não poder
ser mais ninguém, exceto eu mesma. Não poder escolher o melhor entre o possível
e seu reverso. Que espécie de mundo é este, em que sou salva de mim mesma por
ser várias? Com o que me pareço e qual minha semelhança? Não suportei meus
crimes nem meus amores. Senti-me a um só tempo medíocre e divina. Olho para o
céu como algo infinitamente distante. Há condições suficientes na vida para que
uma mulher se sinta humana… deve haver. Contudo, é desumano tomar-se de vários
ou perder-se de si? Minha cabeça torna-se queimosa. Talvez queira deduzir uma
vida inteira, alcançar uma glória mínima da existência, um jazigo do orgulho.
Não sou senão uma maneira de ser. Uma síntese dispersa? Intuo que não passarei
jamais de uma enclausurada angústia, hóspede exemplar, a pérola de uma
generalidade extensiva. É no que nos transformamos, os estourados de si. Como
ser ao mesmo tempo o que acabo de deixar para trás e um personagem da história
de Pequeno Ansioso? E se antes dele escrevem algo a avó, a mãe, a tia louca, o
pai viajante, ou mesmo o espectro daquele irmão morto-vivo? Não há
cuidadosamente uma vida inteira. O resultado da vida de qualquer um é uma súmula
de bagaços. Nossas formas são dedutíveis e improváveis. Qualquer papel que eu
tenha desempenhado alcança uma felicidade ínfima dentro do reino da história, e
a extravasa quando influi em um relapso ou outro cometido pelo leitor. Não vou
naturalmente me deixar influenciar pela mulher que me sinto hoje, livre de
todas aquelas vozes, daquele caldeirão de tormentos alheios, mas antes pelo
palco repleto de misérias humanas, pelo testemunho da queda, pelo artifício
literário da cena. Não suportarei isto. Talvez tenha conquistado finalmente o
meu direito à extinção. Existimos para algo? Há uma pauta demiúrgica que
recorta as inúmeras formas de florescimento da existência? Não quero ser
flexível a seus caprichos. Agora que finalmente deixo de ser algo, não quero
voltar a ser mais nada.
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