sexta-feira, 24 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo V | Parte 25



V - ESCURIDÃO NUMINOSA


25

As histórias são escritas pelas mãos do egoísmo ou da piedade? Que maldita falsificação do ser buscam atrair? São a imposição de algo ou a exibição de queixas? Distribuem papéis e aspirações, enovelam tramas, desencadeiam complexas semelhanças. Levam o tempo inteiro a deduzir ou comentar que a vida era pouca ou errônea ou impossível. Como se tudo não passasse de um resultado desta ou daquela simulação de tramas, sua conclusão e psicologia apregoadas. “O homem não passa de uma história, de sua forma literária de ver o mundo, obediente a seus caprichos, emparedado por ela, atormentadamente previsível”, dizem umas. “Não faz nunca nada por si, pela existência entre homens”, concluem outras. O que diz Hamlet: “vejo a morte iminente de vinte mil homens que, por uma fantasia e um jogo de glória, marcham a caminho de suas tumbas”. Trata-se aqui da história do homem. O personagem nos faz entender que estamos dentro e fora de cada um de nós, fora e dentro de cada história. A história do homem só existe por ser a história do indivíduo que não perdeu a humanidade.
– Não sei desde quando me chamam Dolores. Há muitas histórias em minha cabeça. Sinto-me desatinada por elas. Jamais soube de meus pais. Não localizo a vontade de viver senão em meu sexo. Creio que é o que me faz gostar de mexer todo o corpo, um arrepio de dançar. Nunca penso na realidade ou na alucinação. Há sempre uma música tocando em meu juízo. Gosto de ouvir o menino lendo aquelas histórias. A música pára um pedaço, mas logo fico pensando em pegar nele.
As histórias ruins denotam acaso uma falta de vontade do homem em relação a si mesmo? A perversão torna os livros juízes do homem, graças aos seres monstruosos que povoam os relatos?
- Não me sinto diferente de outras mulheres. Nem parecida com elas. Às vezes me pego surpresa pela exatidão com que algumas buscam cumplicidade. O mundo é tão esquisito para que alguém se sinta igual a outro alguém. O mundo parece uma fábula. Uma composição de muitas vozes. Uma peça com mais personagens do que atores. Não sei quantas imagens de Deus consigo representar. Não damos nunca as cartas. Dizem que matei três pessoas. Não julgo certo ou errado. Eram personagens deploráveis. A esposa de um deles até me agradeceu, a seu modo, acobertando o crime, imaginando uma nova vida expressa no olhar e longe do infortúnio compartilhado com o cafajeste do marido. Deveria me sentir bem. No entanto, não tive consciência do momento daquelas mortes. Não sei de onde vêm tantos espíritos. Não os procuro. Tenho minhas rezas, pedaços de crença, um naco de uma e outra fé.
Rimos ou desacreditamos das histórias. Porém não fazemos o mesmo em relação a nós mesmos. Por mais que nos identifiquemos com o personagem de uma comédia, não cruzamos nosso olhar com o da imagem ao espelho e dizemos: - quão patético somos!
- O meu menino me despertou uma ideia de personalidade. Queria descobrir a si mesmo através dos outros. E para tanto os outros precisam existir. Pequeno Ansioso me ensinou a ser para que assim se confirmasse a própria existência. Foi quando percebeu que eu fugia de minha imaginação, que não havia constância em mim.
O que são as coisas que se passam na vida de cada um, senão um resíduo do entendimento com o mundo, um fragmento da aflição diante do desconhecido, partícula da obsessão por desvendar o improvável, um cadinho de petulância diante, a soma de tudo isto? As histórias, por melhores que sejam, não passam de. O mesmo se dá com quem nos conta cada uma.
- Sou agradecida a Pequeno Ansioso por haver me descrito a bondade do mundo. Estou queimando de formas que não se assemelham entre si, que não escolho, mas que me recolhem. Sinto-me como alguém sem biografia. Menos que um demônio inferior. Por mim mesma não chegaria jamais à boca do Inferno. Por um inóspito amor próprio despertado pelo menino perdi minhas vozes, as vozes de outros em mim, e agora tenho que suportar o peso dessa ciência de tudo à minha volta. O próximo passo da aniquilação será convencer-me de que não posso mais ser personagem. Não haverá mais história suficiente em mim para isto. Não poder ser mais ninguém, exceto eu mesma. Não poder escolher o melhor entre o possível e seu reverso. Que espécie de mundo é este, em que sou salva de mim mesma por ser várias? Com o que me pareço e qual minha semelhança? Não suportei meus crimes nem meus amores. Senti-me a um só tempo medíocre e divina. Olho para o céu como algo infinitamente distante. Há condições suficientes na vida para que uma mulher se sinta humana… deve haver. Contudo, é desumano tomar-se de vários ou perder-se de si? Minha cabeça torna-se queimosa. Talvez queira deduzir uma vida inteira, alcançar uma glória mínima da existência, um jazigo do orgulho. Não sou senão uma maneira de ser. Uma síntese dispersa? Intuo que não passarei jamais de uma enclausurada angústia, hóspede exemplar, a pérola de uma generalidade extensiva. É no que nos transformamos, os estourados de si. Como ser ao mesmo tempo o que acabo de deixar para trás e um personagem da história de Pequeno Ansioso? E se antes dele escrevem algo a avó, a mãe, a tia louca, o pai viajante, ou mesmo o espectro daquele irmão morto-vivo? Não há cuidadosamente uma vida inteira. O resultado da vida de qualquer um é uma súmula de bagaços. Nossas formas são dedutíveis e improváveis. Qualquer papel que eu tenha desempenhado alcança uma felicidade ínfima dentro do reino da história, e a extravasa quando influi em um relapso ou outro cometido pelo leitor. Não vou naturalmente me deixar influenciar pela mulher que me sinto hoje, livre de todas aquelas vozes, daquele caldeirão de tormentos alheios, mas antes pelo palco repleto de misérias humanas, pelo testemunho da queda, pelo artifício literário da cena. Não suportarei isto. Talvez tenha conquistado finalmente o meu direito à extinção. Existimos para algo? Há uma pauta demiúrgica que recorta as inúmeras formas de florescimento da existência? Não quero ser flexível a seus caprichos. Agora que finalmente deixo de ser algo, não quero voltar a ser mais nada.






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