quinta-feira, 16 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo III | Parte 15



III - MARGEM IMPERTURBÁVEL DO SILÊNCIO


15

Uma enervação dolorosa havia se formado na memória de Pequeno Ansioso. Não foram poucas as noites em que se deixava afligir por um coro atonal de vozes e o ranger de uma porta que separava dois mundos. A expedição diária pelos vigamentos da casa começava a assumir uma natureza teratológica. Aos poucos tornava-se um vigilante insone. Algo comprometia a beleza e não sabia ao certo se ocultava-se naquele pequeno quarto ao final da casa ou se disfarçava-se na desordem afetiva de Mãe Dolores. A frase lida em um livro despontava na lembrança: “quando a beleza se torna um signo nefasto não há mais o que buscar no homem”.
A primeira decisão foi montar guarda austera àquele portal, que simbolizava, segundo os cálculos de seu espírito, o marco da agonia. Ali estava, entretecido pela inelutável convicção. O valente guerreiro ou era uma pérola rara da presunção ou supunha-se acolhido pela sorte. O fato é que mantinha a aparência inerme. A casa dormida, precipitava-se pelo extenso corredor, abria a pesada porta de saída para a área descoberta, e dirigia-se a um quadrículo de cimento onde se recolhia água para o cuidado com os peixes. Dali estava defronte o mistério. Cobria-se com um lençol e mantinha a atenção esbugalhada na porta, já recolhida ao cadeado habitual. A noite inteira, intactos, ele e o que houvesse por trás da expectativa.
Nada.
Nada por três noites.
Tudo lhe parecia crer que a vigília não é um emplasto eficaz contra a inquietude. Não se interessava por conclusões. Estava exausto. Mãe Dolores não o deixou quieto dia algum. Aquele garoto lhe revelara um acordo com a ventura. Pequeno Ansioso começava a pensar que um conhecimento pode ter fim, sendo bastante observar a ruína de seu reverso. A verdade é que não conhecia ou desconhecia praticamente nada. Era um garoto exânime pela crença de algo que não podia intuir e que o afligia como uma tempestade. Desvalido de suas resistências, dormira ali mesmo no quintal, na terceira noite. Não fora acordado por exéquias, mas sim pelo aviltante vozerio de aparições embaçadas e o ranhoso movimento da porta. O exorcismo seria acaso uma forma de cabotinagem? Foi o que lhe deu a pensar, por alguns instantes. Na verdade, era apenas a casa que despertava com as tarefas mais rotineiras: comida aos peixes e galinhas, um tio aplicado em seus alteres, o destrancar de mil portas e janelas.
- De quem procuro livrar-me?
Longe de ser um fabulista, Pequeno Ansioso arriscava-se a questionar com o próprio ser a mínima coisa que punha o homem em jogo. Adoecia precocemente de angústia e, a continuar assim, decerto morreria dela.
- Como deixar a mercê do horror os riscos da paixão?
Não era tão simples. A audácia não passava de uma vaga resposta, embora totalizante a cada mínimo gesto.
- Devo estar de todo perdido. Minha única meta é aguardar por um sinal que seja desta porta.
Esgotado, não via mais nada à frente. Ao lado da geladeira havia um louçário onde enlanguescia de pouco uso a chave do cadeado do mistério. Sabia disto. Sempre o soube. Podia alcançar a chave, porém o mistério oculta-se na aparição ou na guarda de seus limites indecifráveis? A mão trêmula diante do cadeado é a mesma, medida por toda essência do abismo. Os olhos pesados davam a tudo um preço gasto. Veria o que viria ou não veria nada além do invisível? A ousadia ou limite possível debatia-se com a lástima de uma justiça inócua. Único limite possível: abrir a porta e vasculhar as entranhas do mito.
Decidiu não se deixar de todo entregue ao destino. Não levou consigo lanterna ou fósforos. A escuridão deslizava, o enigma se ajustava ao novo imprudente juiz, o abismo mostrava-se indistinto, a evidência ria - tormentos e aflições não levam a Deus, a felicidade não passa de felicidade, de agonia a agonia. Não havia nada ali. Não há nunca nada onde esperamos que haja.
- Comida de peixes, mangueira, ferramentas caseiras, sacos de cimento, um carrinho de mão, saco de pregos, ração para aves, uma escada, o que mais vi?
Eis o inventário possível do mistério. As coisas caem de nada. O menino se horroriza diante do encanto espatifado. Uma voz a um canto lhe dizia: “this cheap one should be fucked until dying”. Outra chicoteava a escuridão com gemidos indecifráveis. Não há teatro mais portentoso que o da casualidade.



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