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Uma
enervação dolorosa havia se formado na memória de Pequeno Ansioso. Não foram
poucas as noites em que se deixava afligir por um coro atonal de vozes e o
ranger de uma porta que separava dois mundos. A expedição diária pelos
vigamentos da casa começava a assumir uma natureza teratológica. Aos poucos
tornava-se um vigilante insone. Algo comprometia a beleza e não sabia ao certo
se ocultava-se naquele pequeno quarto ao final da casa ou se disfarçava-se na
desordem afetiva de Mãe Dolores. A frase lida em um livro despontava na
lembrança: “quando a beleza se torna um signo nefasto não há mais o que buscar
no homem”.
A
primeira decisão foi montar guarda austera àquele portal, que simbolizava, segundo
os cálculos de seu espírito, o marco da agonia. Ali estava, entretecido pela
inelutável convicção. O valente guerreiro ou era uma pérola rara da presunção
ou supunha-se acolhido pela sorte. O fato é que mantinha a aparência inerme. A
casa dormida, precipitava-se pelo extenso corredor, abria a pesada porta de saída
para a área descoberta, e dirigia-se a um quadrículo de cimento onde se
recolhia água para o cuidado com os peixes. Dali estava defronte o mistério.
Cobria-se com um lençol e mantinha a atenção esbugalhada na porta, já recolhida
ao cadeado habitual. A noite inteira, intactos, ele e o que houvesse por trás
da expectativa.
Nada.
Nada por três noites.
Tudo lhe parecia crer que a vigília não é um emplasto eficaz
contra a inquietude. Não se interessava por conclusões. Estava exausto. Mãe
Dolores não o deixou quieto dia algum. Aquele garoto lhe revelara um acordo com
a ventura. Pequeno Ansioso começava a pensar que um conhecimento pode ter fim,
sendo bastante observar a ruína de seu reverso. A verdade é que não conhecia ou
desconhecia praticamente nada. Era um garoto exânime pela crença de algo que
não podia intuir e que o afligia como uma tempestade. Desvalido de suas
resistências, dormira ali mesmo no quintal, na terceira noite. Não fora
acordado por exéquias, mas sim pelo aviltante vozerio de aparições embaçadas e
o ranhoso movimento da porta. O exorcismo seria acaso uma forma de cabotinagem?
Foi o que lhe deu a pensar, por alguns instantes. Na verdade, era apenas a casa
que despertava com as tarefas mais rotineiras: comida aos peixes e galinhas, um
tio aplicado em seus alteres, o destrancar de mil portas e janelas.
- De quem procuro livrar-me?
Longe de ser um fabulista, Pequeno Ansioso arriscava-se a
questionar com o próprio ser a mínima coisa que punha o homem em jogo. Adoecia
precocemente de angústia e, a continuar assim, decerto morreria dela.
- Como deixar a mercê do horror os riscos da paixão?
Não era tão simples. A audácia não passava de uma vaga
resposta, embora totalizante a cada mínimo gesto.
- Devo estar de todo perdido. Minha única meta é aguardar por
um sinal que seja desta porta.
Esgotado, não via mais nada à frente. Ao lado da geladeira
havia um louçário onde enlanguescia de pouco uso a chave do cadeado do
mistério. Sabia disto. Sempre o soube. Podia alcançar a chave, porém o mistério
oculta-se na aparição ou na guarda de seus limites indecifráveis? A mão trêmula
diante do cadeado é a mesma, medida por toda essência do abismo. Os olhos
pesados davam a tudo um preço gasto. Veria o que viria ou não veria nada além
do invisível? A ousadia ou limite possível debatia-se com a lástima de uma
justiça inócua. Único limite possível: abrir a porta e vasculhar as entranhas
do mito.
Decidiu não se deixar de todo entregue ao destino. Não levou
consigo lanterna ou fósforos. A escuridão deslizava, o enigma se ajustava ao
novo imprudente juiz, o abismo mostrava-se indistinto, a evidência ria -
tormentos e aflições não levam a Deus, a felicidade não passa de felicidade, de
agonia a agonia. Não havia nada ali. Não há nunca nada onde esperamos que haja.
- Comida de peixes, mangueira, ferramentas caseiras, sacos
de cimento, um carrinho de mão, saco de pregos, ração para aves, uma escada, o
que mais vi?
Eis o inventário possível do mistério. As coisas caem de
nada. O menino se horroriza diante do encanto espatifado. Uma voz a um canto lhe dizia: “this cheap one should be fucked until
dying”. Outra
chicoteava a escuridão com gemidos indecifráveis. Não há teatro mais portentoso
que o da casualidade.
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