quarta-feira, 15 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo II | Parte 7


II - CÉUS REMOTOS

7

As histórias mais fascinantes vinham todas de Alfredo Aquilino. A tesoura enfiada na enfermeira em uma das inúmeras escapadas das clínicas onde a família teimava em exilá-lo. Os fios de cabelos cuidadosamente arrancados e guardados em uma caixa de fósforo. Os livros roubados da biblioteca de um irmão. Sem sabê-lo, foi o grande personagem de minha infância. Como aceitar a versão depreciativa de que não passava de um louco?
Alfredo Aquilino era um homem doente, que merecia cuidados humanos. Ninguém o queria por perto, isto é fato. Às vezes ia visitar a irmã, quando nos encontrávamos. Inesquecíveis as manhãs.
- Escute estes versos: “chama enfurecida, / queima a si mesma / e não ao que te busca / como a um guia”. Parece tão antigo. O mundo inteiro nos parece tão remoto, cada vez que lhe ouvimos as verdadeiras notícias. Somos tão reles, ínfimos. O único sentido de doação que entendemos vem dali, daquela cruz na parede de todas as salas. Símbolo desprovido ou gasto de sentido. Todos aqui somos frutos de uma imunda piedade, uma fraudada compaixão. Somos a porcaria de Deus.
- De quem são aqueles versos?
- Quer ouvir mais?
Nas manhãs em que ia visitar a irmã eu estava ali. Soube depois que indagava sempre da avó se eu estaria em casa.
- Minha irmã gosta muito de mim. Vou pedir que tragam meus livros para cá. Quero que fiquem contigo, que os guardes para mim, pois não tenho onde deixá-los. Hoje trouxe apenas este para ti.
Não gostava de falar em nomes de poetas. Interessava-se pelo sentido extraído dos versos. Ao me ler trechos de poemas eu não sabia nunca se eram dele ou de outros. Uma única vez me trouxe poemas declaradamente seus, publicados em uma revista dirigida pelo irmão, Anselmo Calamares. Os olhos estavam sem guia.
- Tenho um grande carinho por minha irmã. Somos mais de dez na família. Se quero falar com algum tenho que ir até ele. Sei que não tenho casa. Que vivo de favores. A nenhum deles interessa saber onde isto começou. Querem, quando muito, ser mais piedosos uns do que os outros. Não tenho onde guardar meus versos. Misturam-se com a memória de uns poucos livros lidos. O Anselmo me disse que tem mais de dez mil livros em casa. Parece uma coisa sem medida. Quando vou ali perco a fala. Sei que é o poeta da família, e que toda família precisa de um… Só queria ler todos aqueles livros… Alguns, na verdade. Deve estar cercado de coisas sem valor. Um dia desses li um soneto que se concluía da forma mais vaga e imprópria possível. Dizia assim: “vão cantando no azul as cítaras da tarde”. O que isto quer dizer?
- E os teus livros?
- Meia dúzia. São roubados. Ou então umas porcarias que o Anselmo vez por outra me dá. Observa isto: “Quando se esvai o olho da mulher não há outra maneira de se ver o mundo”. É uma imagem imensa. Talvez excessiva, mas não de todo mentirosa. As mulheres sabem ver o mundo. Os homens sabem como fazê-lo, talvez. Mas não terão o que fazer se não forem levados por uma visão. Os poetas são este paradoxo: homens de visão. Alguns. A maior parte apenas escreve versos.
Era hora do banho. Tinha que ir para a escola. Alfredo também deveria retornar à pensão em que a família o havia colocado. Recolher-se àquele quarto de vida.
Um dia, quando cheguei na casa da avó, Mãe Dolores me levou até o pequeno móvel de madeira e vidro que recolhia os livros de tio Alfredo. Revistas, livros velhos, alguns rasgados. Papéis amassados, rabiscados. Um mata-borrão, caixas de remédio, bosta de baratas. Trechos quase ilegíveis de cartas, manuscritos de poemas. Uma valiosa herança, decerto. As traças haviam devorado irregularmente as páginas de Macbeth. “Prudência? Abandonar…” “Vãos esforços! Pois mais fácil…” - nada se concluía naquela leitura.
­- Toda a biblioteca do mundo mal cabe em uma estante. Não importa o que podes ler, mas sim o que verdadeiramente transfigura tua vida. Poucos livros ajudarão nisto.
Sem embaralhar a memória, diante de tudo aquilo tão pouco comecei a pensar de onde vinha toda a força de Alfredo Aquilino.
- Por que tocaste fogo no guarda-roupa na casa de teu pai?
Jamais o vi rir tanto. Não deveria ter feito a pergunta? E se não quisesse mais me ver? Faltava dizer que eu estava ali, justo naquela tarde, e que o vi desmaiado sobre a cama, com a asfixia mal disfarçando um riso salteador. Logo assumiu um ar estranhamente sério.
- Todas as coisas têm seu tempo. Estão no mundo e servem para algo. Aquela não era a casa de meu pai, e sim a de duas de minhas irmãs. Meu pai morava ali com elas, como moro hoje em uma pensão a duas quadras daqui. Desde a morte de minha mãe que o velho vinha sem rumo. Meus pais viveram juntos até os oitenta anos. Quando se é tão teimoso assim e de repente se perde o pé de apoio, não mais é possível imaginar forma alguma de apego à vida. Ou se enlouquece de vez, ou se torna submisso aos dilemas cristãos. Meu pai era agnóstico. Os agnósticos são miseráveis criaturas que precisam de algum empurrão para cair na fé. Não tenho nenhum desapego pela vida. Entendia que deveria matá-lo. Preso àquele quarto em que eu estava, imaginei como única maneira possível, de cumprir algo que me soava como um íntimo sinal de justiça, atear fogo ao guarda-roupa. Não queria matar a mim mesmo. Vê como toda forma de julgamento é uma injúria? O entendimento alheio não define nossos próprios atos. Um erro só acoberta outro.
Silenciou um pouco e logo indagou se não gostei do presente. Salvou-me a avó do indisfarçável constrangimento. Era uma daquelas horas de rompimento de nossos encontros. Os olhares ficaram algo estranhos.
“Os livros são atos essenciais de escritura e não de leitura.”
Fisgou-me esta, entre inúmeras outras anotações nos breviários reflexivos, disformes alguns, iluminados uns poucos. Contudo, achei que estava ali apenas para ouvir.


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