II - CÉUS REMOTOS
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Duas ou três ligações.
Logo já estávamos no hospital. O largo e minúsculo corpo de Eudoro Antunes
lentamente escurecendo sobre o leito. Em meio à agitação de olhares, o derrame
agônico dos murmúrios, lágrimas mal dissimuladas, pude entrever seus últimos
instantes. Há muito - na verdade - já estava distante de tudo aquilo. Acreditavam
todos que seu diálogo único era com a bebida, poucos sabendo tratar-se de outra
matéria a solidão. Jamais conhecera pessoa igualmente disposta a fundir-se na
experiência alheia. Estranhado, foi destilando mordacidade até encontrar-se com
a rejeição. Tio Eudoro sempre aparecia na casa da avó, com a enorme pasta,
mostruário de drogas caseiras. Levava consigo o gosto de álcool no hálito.
-
Pequeno, sonhei tanto com alguma mínima forma de transcendência. Mas vou acabar
meus dias matando os outros. Vender remédios foi tudo o que pude fazer na vida.
Na velha
cristaleira na sala de refeições havia uma garrafa de licor, cujo conteúdo tio
Eudoro cuidava de fazer desaparecer, a cada visita, até que novamente, sem que
ele percebesse, a avó o completasse.
- Sabe o
que diabos vejo na bebida? Não, não sabe. Ninguém sabe.
Outras
vezes desatava a falar de amantes que jamais conheceu. “As danadas são como
vetustas sombras do desejo”. Da mulher dizia ser a antífrase da razão. Para
ter-se com uma não havia maneira mais dada senão desfazer-se da outra.
- Por
vezes penso que fui regurgitado por ambas senhoras, vestais iníquas e estouvadas,
safadas bíblicas.
Todas
aquelas pequenas cenas projetadas pela memória foram dissipadas de uma só vez
pela súbita dor no braço, uma das tias-avós me retirando do quarto do hospital.
- Isto
não é lugar para uma criança.
Em casa, Mãe Dolores era a única a me reconfortar. Com ela,
criança podia tudo. E não hesitou em me dizer que tio Eudoro havia morrido.
Sentei-me a seu lado, no chão, a cabeça baixa, a mão cuidando de algumas
lágrimas em meu rosto. Toda a memória voltada para aquele tio, recordando-lhe
as palavras:
- Toma, filho.
Então fazia com que a moeda desaparecesse de suas mãos. Nada
mais havia ali para ser tocado.
- Tudo o que vemos, Pequeno, é o intocável. Na virtude o que
vemos não é senão a impostura, a hipocrisia. A ingenuidade nos chega sempre na
forma de ignorância. Um dia compreenderás.
Tio Eudoro trazia alegria àquela casa. No entanto, todos lhe
recebiam com ar suspeito. Por vezes ouvi da boca das irmãs:
- Dá pena ver um homem tão bom sendo desfeito pela bebida.
- Tio, me deixa tentar pegar a moeda outra vez.
Impossível. Era um sacerdote de meus enlevos. E encantava-me
ainda com inúmeras histórias:
- Um dia o deus do tempo engoliu uma pedra mágica
acreditando que lhe fosse o filho. Ao descobrir o engano a cuspiu o mais longe.
A pedra converteu-se em um objeto sagrado, cultuado por quantos vissem nela a
imagem de uma deusa presciente.
E logo completava:
- Que coisa absurda, cuspir o próprio filho como se fosse um
pedregulho…
E ria o mais que ria.
Na noite em que morreu acordei atormentado por um pesadelo.
Muitos dos livros que eu já lera estavam sendo escritos naquele exato momento,
os autores espalhados por um lugar sem fim, sentados em pedras, troncos de
árvore, agachados, derreados, recurvados, deitados, a escrever as páginas que
para sempre me acompanhariam. Fyodor ocupava-se das pesarosas consciências,
Hyde disfarçava-se em Stevenson, Swift traçava as andanças de Gulliver, Edmond
rasurava e refazia o périplo de Dumas, o enigmático Doyle dissecava o
improvável, e todos se embriagavam e riam com estardalhaço. Páginas e páginas
se misturavam, germinantes e germinadas, e asfixiava-me um odor múltiplo,
híbrido, vindo de todas aquelas garrafas e da tonitruante revoada de risos,
esgares, imagens, rapsódias da vertigem, devaneio instigado, suores fétidos,
Unkas, Lord Jim, Drácula, páginas e páginas se misturando, Bruce Wayne e Lady
Macbeth, anjos caídos nelas, emboscados, trocando bebidas, salseiro de risos,
aflitivos engodos, motim, saltério e poções mágicas, roteiros esgarçados, sabás
e múltiplos teoremas, meu peito ardendo, arfante, o ar rumorejando, faltando…
- Chama o médico, rápido. Pequeno está com crise. Deus! Não
quero perder mais este filho.
Ao despertar me deparei com dupla aflição: a da mãe e a de
meus pulmões em busca de ar. Desfazia-se ainda, não sem relutância, a
angustiante cena em que personagens e autores se mesclavam em um mapa
imaginário da memória, entrançados, como paradigmas embaraçosos da própria
existência humana.
A luz vinda do teto desfazia com violência todo juízo
estético. Não havia senão a perspectiva de morte por asfixia. Todo o meu ser
estava possuído por uma quase absoluta falta de ar. Gritava com todo o olhar. E
a cada átimo, recolhia insuspeitas fortunas da eternidade, estojos miraculosos
do infinito com as ramagens precipitadas sobre o acaso. Tudo ali, como na
autópsia de um caracol.
- Filho, responde!
A voz da mãe era como o som ferruginoso de pesados ferrolhos
sendo destravados. Aos poucos me precipitava de volta, interrompendo o perigo e
as impudentes diversões. Redesenhava sombras, contornos, aos poucos os rostos
ao meu redor. O do pai nunca entre eles, sempre em suas viagens.
- Fala comigo, filho!
Naquela noite não pôde vir tio Domênico, ausente da cidade. Logo trouxeram outro médico, porém já me encontraram nos braços da mãe, reconfortado por seu amor.
Naquela noite não pôde vir tio Domênico, ausente da cidade. Logo trouxeram outro médico, porém já me encontraram nos braços da mãe, reconfortado por seu amor.
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