terça-feira, 14 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo II | Parte 2

II - CÉUS REMOTOS

2

Duas ou três ligações. Logo já estávamos no hospital. O largo e minúsculo corpo de Eudoro Antunes lentamente escurecendo sobre o leito. Em meio à agitação de olhares, o derrame agônico dos murmúrios, lágrimas mal dissimuladas, pude entrever seus últimos instantes. Há muito - na verdade - já estava distante de tudo aquilo. Acreditavam todos que seu diálogo único era com a bebida, poucos sabendo tratar-se de outra matéria a solidão. Jamais conhecera pessoa igualmente disposta a fundir-se na experiência alheia. Estranhado, foi destilando mordacidade até encontrar-se com a rejeição. Tio Eudoro sempre aparecia na casa da avó, com a enorme pasta, mostruário de drogas caseiras. Levava consigo o gosto de álcool no hálito.
- Pequeno, sonhei tanto com alguma mínima forma de transcendência. Mas vou acabar meus dias matando os outros. Vender remédios foi tudo o que pude fazer na vida.
Na velha cristaleira na sala de refeições havia uma garrafa de licor, cujo conteúdo tio Eudoro cuidava de fazer desaparecer, a cada visita, até que novamente, sem que ele percebesse, a avó o completasse.
- Sabe o que diabos vejo na bebida? Não, não sabe. Ninguém sabe.
Outras vezes desatava a falar de amantes que jamais conheceu. “As danadas são como vetustas sombras do desejo”. Da mulher dizia ser a antífrase da razão. Para ter-se com uma não havia maneira mais dada senão desfazer-se da outra.
- Por vezes penso que fui regurgitado por ambas senhoras, vestais iníquas e estouvadas, safadas bíblicas.
Todas aquelas pequenas cenas projetadas pela memória foram dissipadas de uma só vez pela súbita dor no braço, uma das tias-avós me retirando do quarto do hospital.
- Isto não é lugar para uma criança.
Em casa, Mãe Dolores era a única a me reconfortar. Com ela, criança podia tudo. E não hesitou em me dizer que tio Eudoro havia morrido. Sentei-me a seu lado, no chão, a cabeça baixa, a mão cuidando de algumas lágrimas em meu rosto. Toda a memória voltada para aquele tio, recordando-lhe as palavras:
- Toma, filho.
Então fazia com que a moeda desaparecesse de suas mãos. Nada mais havia ali para ser tocado.
- Tudo o que vemos, Pequeno, é o intocável. Na virtude o que vemos não é senão a impostura, a hipocrisia. A ingenuidade nos chega sempre na forma de ignorância. Um dia compreenderás.
Tio Eudoro trazia alegria àquela casa. No entanto, todos lhe recebiam com ar suspeito. Por vezes ouvi da boca das irmãs:
- Dá pena ver um homem tão bom sendo desfeito pela bebida.
- Tio, me deixa tentar pegar a moeda outra vez.
Impossível. Era um sacerdote de meus enlevos. E encantava-me ainda com inúmeras histórias:
- Um dia o deus do tempo engoliu uma pedra mágica acreditando que lhe fosse o filho. Ao descobrir o engano a cuspiu o mais longe. A pedra converteu-se em um objeto sagrado, cultuado por quantos vissem nela a imagem de uma deusa presciente.
E logo completava:
- Que coisa absurda, cuspir o próprio filho como se fosse um pedregulho…
E ria o mais que ria.
Na noite em que morreu acordei atormentado por um pesadelo. Muitos dos livros que eu já lera estavam sendo escritos naquele exato momento, os autores espalhados por um lugar sem fim, sentados em pedras, troncos de árvore, agachados, derreados, recurvados, deitados, a escrever as páginas que para sempre me acompanhariam. Fyodor ocupava-se das pesarosas consciências, Hyde disfarçava-se em Stevenson, Swift traçava as andanças de Gulliver, Edmond rasurava e refazia o périplo de Dumas, o enigmático Doyle dissecava o improvável, e todos se embriagavam e riam com estardalhaço. Páginas e páginas se misturavam, germinantes e germinadas, e asfixiava-me um odor múltiplo, híbrido, vindo de todas aquelas garrafas e da tonitruante revoada de risos, esgares, imagens, rapsódias da vertigem, devaneio instigado, suores fétidos, Unkas, Lord Jim, Drácula, páginas e páginas se misturando, Bruce Wayne e Lady Macbeth, anjos caídos nelas, emboscados, trocando bebidas, salseiro de risos, aflitivos engodos, motim, saltério e poções mágicas, roteiros esgarçados, sabás e múltiplos teoremas, meu peito ardendo, arfante, o ar rumorejando, faltando…
- Chama o médico, rápido. Pequeno está com crise. Deus! Não quero perder mais este filho.
Ao despertar me deparei com dupla aflição: a da mãe e a de meus pulmões em busca de ar. Desfazia-se ainda, não sem relutância, a angustiante cena em que personagens e autores se mesclavam em um mapa imaginário da memória, entrançados, como paradigmas embaraçosos da própria existência humana.
A luz vinda do teto desfazia com violência todo juízo estético. Não havia senão a perspectiva de morte por asfixia. Todo o meu ser estava possuído por uma quase absoluta falta de ar. Gritava com todo o olhar. E a cada átimo, recolhia insuspeitas fortunas da eternidade, estojos miraculosos do infinito com as ramagens precipitadas sobre o acaso. Tudo ali, como na autópsia de um caracol.
- Filho, responde!
A voz da mãe era como o som ferruginoso de pesados ferrolhos sendo destravados. Aos poucos me precipitava de volta, interrompendo o perigo e as impudentes diversões. Redesenhava sombras, contornos, aos poucos os rostos ao meu redor. O do pai nunca entre eles, sempre em suas viagens.
- Fala comigo, filho!
Naquela noite não pôde vir tio Domênico, ausente da cidade. Logo trouxeram outro médico, porém já me encontraram nos braços da mãe, reconfortado por seu amor.




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