II - CÉUS REMOTOS
Nas
conversas com Alfredo Aquilino o mundo ia se descascando sem pressa. Um dia
percebeu que o melhor delas é que eram entrecortadas. Pôs-se então a tracejar
um elo silencioso entre as inúmeras interrupções.
- Como são as mulheres?
- Eram. Não me pergunte como as coisas são, mas sim como
alguma vez foram. Já não me sinto dentro do que quer que seja, não tenho sido
mais nada.
A avó indagava se tudo estava bem, se queríamos mais um
suco. A manhã mal disfarçava seus traquejos de alçapão.
- Eu gostava de pentear os cabelos. Ficava ali diante do
vazio, penteando, tempo indo e vindo, desavisado de outro tempo. Aleuda sabia
que eu tinha essa mania. Quando vinha trazer o comprimido eu a confundia, dava
uma de esquisito, olhava o teto sem muito gosto, aí ela passava a mão nos meus
cabelos. “Se eu pudesse, cuidava do senhor de outro jeito.” Bem sei que achava
que eu não ouvia. Que não entendia. Ela que não sabia: eu cuspia o comprimido
fora tão logo a porta se fechava. Tudo é tão igual no amor. Não importa que se
mude a loucura de nome.
Casa e tempo eram outros. Confundiam-se os relatos da
memória. Alfredo Aquilino piorava a olhos vistos. Esbravejava que o irmão o
estava matando. Queimava, rasgava, feria. Não suportava nada ou ninguém à sua
frente. Recordo incidentes pesados, quando esmurrou uma das irmãs, por havê-lo
chamado de doido. Mas tudo mesclado a uma fascinante presença de espírito, a
exemplo do motivo de sua expulsão de uma das clínicas de repouso: acordou no
meio da noite e antecipou em uma hora todos os relógios do lugar, alterando
medicações e outros cuidados.
- Tropeço em tanto infortúnio. Dou com miseráveis carpindo
minha vida, capinando com belos moldes em rostos turvos meu arrastar-se pelos
dias. Que se desfaçam, ou se entreguem a seus demônios. Não posso matar a todos
como me pedem… as vozes que me rogam: morte, morte, morte. Uma obscura missão
que não saberia cumprir.
As manhãs salgavam-se de mesmices. Pequeno Ansioso apenas
sabia notícia das crises, o leva e traz da vara familiar. Conhecia um único
Alfredo Aquilino: o que via, ou melhor: ouvia. O grande fantasma era o outro.
Se havia uma loucura teria que haver também uma não-loucura. O contrário
resulta sempre na melhor afirmação do que se é, segundo uma aborrecida legenda.
- Às vezes ele fica uma manhã quase inteira sem dizer
palavras. Balança-se na cadeira. Tamborila os dedos, suspira, quase solfeja, um
salmo, talvez, ou mesmo um rumor de inquietude. Simplesmente parece não estar
ali.
O embate com os monstros que se desenham na fixidez do
olhar. Alfredo sabia que aquelas criaturas não sairiam dali senão através do
espírito, o fio condutor de toda realidade possível, visível ou não. Sabia. E
apenas sabia.
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