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A casa
nem sempre era a mesma. Quando o pai viajava eu dormia em outro quarto, ao lado
da mãe. Algumas crises de asma interrompiam as noites. Não muito frequente, o
balão de oxigênio remediava algumas dilacerações da quietude. Tudo indicava uma
grande exasperação minha. O médico entendia de pulmões. Era um desses abnegados
que iam de uma parte a outra, atendendo a toda espécie de enfermidades. O
médico de família é deus quando cura uma gripe e a própria encarnação do
demônio quando falha ante o inevitável. Chagas Domênico não me ensinou
propriamente a respirar, mas aprendi com ele algumas inesquecíveis noções de
ritmo. Magro e alto. Graças a seu estetoscópio, que me exercia o fascínio de
uma serpente metálica, jamais lhe fixei o rosto. Historietas familiares? Dizem
que mudou de nome inúmeras vezes. Viajou por muitos lugares, estudando e
estudado, curioso e fugidio. Já bem idoso, sem melhor opção, acabou morrendo.
Renderam-lhe então discretas homenagens. Para alguns, a morte tece um cânone
solene e incontestável. Chagas Domênico não deu a vida a alimentar o
hipocondríaco banquete familiar.
- Respira fundo.
- Quem vai ficar comigo?
- Bem sabes que vou embora. Morde aqui. Fecha os olhos.
Quando eu não estiver mais, deves pensar em teu íntimo e pausar a respiração.
Não irás a parte alguma sem este entendimento com o ar. Não é uma doença,
Pequeno, mas sim algo intratável dentro de ti, uma teimosia, uma errância, uma
vontade de expulsar de si todas as ânsias de uma só vez.
- Posso rir?
- Desde que não percas o andamento do…
- …riso.
Era um homem sério e que sabia me divertir sem privar-me da
agudez de suas palavras. Depois a avó me mostrava aquelas naturezas-mortas nas
paredes da casa: frutas mescladas com peixes, flores com cabeças de aves, e a
nudez assustadora daquela mulher vista de costas inclinando-se sobre o piano.
Eram pinturas do precioso cunhado. Um pargo abraçado por malvas-rosas. Um
sanhaço resmungão capturado por uma bandeja de siriguelas. O piano silencioso
devorando o corpo daquela mulher que apenas o instigava com sua nudez. As
coisas mais simples assumem sempre uma dimensão inconfundível. Saltam de si em
busca de comida e fala. Aquele derrame de imagens me açoitava. Uma, contudo, me
era mais desafiante, quase emulsiva. A cerca quebrada, sobre a qual pendiam os
galhos de uma frondosa árvore, e a curva da vereda que ia seguramente dar em
lugar algum, estampa que foi uma ramagem indecifrável ou desatino arbóreo de
minha infância. Enfebrecia diante da mínima trilha insinuada a caminho do
não-lugar.
Ao ir-se Chagas Domênico, ficou-me no braseiro dos dias sua
voracidade mestiça. Enquanto me auscultava traçava um círculo de fantasmas, uma
estranha mesa onde imaginava impossível poder aquele homem conversar com o
autor das ceias fantásticas que pintava. Era um tio desatado de si mesmo,
segundo me parecia. Trazia consigo à mesa todas as figuras das telas e mais os
instrumentos cirúrgicos e fotos inúmeras de céus e paisagens recônditas.
Propunha-me dar àquilo um recorte abissal.
- Nada no mundo existe senão em função de misturas. Não há
composição verdadeira que não seja baseada na diversidade. O orgulho tece mofo
e mofa da existência.
- Tio, e se recorto tudo isto e não encontro nada que se
encaixe?
- Aí então estás enroscado, Pequeno, pois não há réstia de
cor ou fragmento de luz que não traga em si a chave de toda a paleta.
Tempos depois compreendi que suas ideias políticas haviam
sido erroneamente confundidas com um ideário humano. Não era o comunista
emblemático, mas antes, bem antes, o homem consciente de seus limites e da raiz
de suas atitudes.
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