quarta-feira, 15 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo II | Parte 6


II - CÉUS REMOTOS

6

A casa nem sempre era a mesma. Quando o pai viajava eu dormia em outro quarto, ao lado da mãe. Algumas crises de asma interrompiam as noites. Não muito frequente, o balão de oxigênio remediava algumas dilacerações da quietude. Tudo indicava uma grande exasperação minha. O médico entendia de pulmões. Era um desses abnegados que iam de uma parte a outra, atendendo a toda espécie de enfermidades. O médico de família é deus quando cura uma gripe e a própria encarnação do demônio quando falha ante o inevitável. Chagas Domênico não me ensinou propriamente a respirar, mas aprendi com ele algumas inesquecíveis noções de ritmo. Magro e alto. Graças a seu estetoscópio, que me exercia o fascínio de uma serpente metálica, jamais lhe fixei o rosto. Historietas familiares? Dizem que mudou de nome inúmeras vezes. Viajou por muitos lugares, estudando e estudado, curioso e fugidio. Já bem idoso, sem melhor opção, acabou morrendo. Renderam-lhe então discretas homenagens. Para alguns, a morte tece um cânone solene e incontestável. Chagas Domênico não deu a vida a alimentar o hipocondríaco banquete familiar.
- Respira fundo.
- Quem vai ficar comigo?
- Bem sabes que vou embora. Morde aqui. Fecha os olhos. Quando eu não estiver mais, deves pensar em teu íntimo e pausar a respiração. Não irás a parte alguma sem este entendimento com o ar. Não é uma doença, Pequeno, mas sim algo intratável dentro de ti, uma teimosia, uma errância, uma vontade de expulsar de si todas as ânsias de uma só vez.
- Posso rir?
- Desde que não percas o andamento do…
- …riso.
Era um homem sério e que sabia me divertir sem privar-me da agudez de suas palavras. Depois a avó me mostrava aquelas naturezas-mortas nas paredes da casa: frutas mescladas com peixes, flores com cabeças de aves, e a nudez assustadora daquela mulher vista de costas inclinando-se sobre o piano. Eram pinturas do precioso cunhado. Um pargo abraçado por malvas-rosas. Um sanhaço resmungão capturado por uma bandeja de siriguelas. O piano silencioso devorando o corpo daquela mulher que apenas o instigava com sua nudez. As coisas mais simples assumem sempre uma dimensão inconfundível. Saltam de si em busca de comida e fala. Aquele derrame de imagens me açoitava. Uma, contudo, me era mais desafiante, quase emulsiva. A cerca quebrada, sobre a qual pendiam os galhos de uma frondosa árvore, e a curva da vereda que ia seguramente dar em lugar algum, estampa que foi uma ramagem indecifrável ou desatino arbóreo de minha infância. Enfebrecia diante da mínima trilha insinuada a caminho do não-lugar.
Ao ir-se Chagas Domênico, ficou-me no braseiro dos dias sua voracidade mestiça. Enquanto me auscultava traçava um círculo de fantasmas, uma estranha mesa onde imaginava impossível poder aquele homem conversar com o autor das ceias fantásticas que pintava. Era um tio desatado de si mesmo, segundo me parecia. Trazia consigo à mesa todas as figuras das telas e mais os instrumentos cirúrgicos e fotos inúmeras de céus e paisagens recônditas. Propunha-me dar àquilo um recorte abissal.
- Nada no mundo existe senão em função de misturas. Não há composição verdadeira que não seja baseada na diversidade. O orgulho tece mofo e mofa da existência.
- Tio, e se recorto tudo isto e não encontro nada que se encaixe?
- Aí então estás enroscado, Pequeno, pois não há réstia de cor ou fragmento de luz que não traga em si a chave de toda a paleta.
Tempos depois compreendi que suas ideias políticas haviam sido erroneamente confundidas com um ideário humano. Não era o comunista emblemático, mas antes, bem antes, o homem consciente de seus limites e da raiz de suas atitudes.




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