quinta-feira, 16 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo III | Parte 11


III - MARGEM IMPERTURBÁVEL DO SILÊNCIO



11

As entranhas da casa. Mãe Dolores nua por inteiro, celebrada por si mesma no recolhimento de todos os sítios, logo após o almoço. Pequeno Ansioso percorria o largo corredor, estimando-se intérprete de incontáveis mistérios. Esguelhando-se no pavio da caminhada, vislumbrava finalmente o sortilégio anunciado: como amar outro Deus senão aquele corpo quase em levitação? Era uma esplêndida totalidade, trazendo consigo até mesmo a insustentável impossibilidade de alardear-lhe os meneios, dividir com quem quer que seja a visão primordial.
- Vem cá.
Quebraram-se mil taças, todo o vinho do mundo ao chão. Desfez-se o último enigma que sustentava a existência humana.
- Anda, Pequeno. Larga de ser tonto.
Não demorou a entender que ali tinha início um estágio mais elevado do mistério. Uma nova letra se desvelava no espírito.
- Quero ser teu fado, tua sombra, teu ritmo. Quero ser tua fala, teu ofício.
E dançava, molequeando, sorriso largo.
- Quero ser tua cuia. Beija aqui.
E mostrava onde.
- Não sabes? Não sabes isto! Não deves saber outro tanto.
As tardes passaram então a ser historiadas por um mapa secreto. Despertar invisível. Transcorreram beijos e suores, o deslizar dos dedos, o refúgio da língua, mínimos apertos, o ardil dos beliscões, uma primeira floração de mordidas. Pequeno Ansioso era um aprendiz de corpo e espírito. O melhor aluno de sigilos com que poderia sonhar Mãe Dolores. Fez tanto segredo de suas preleções que por vezes pôs-se a duvidar de.
- A casa me exercia um enorme fascínio. Insultava-me a desvendá-la, a tocar em um ponto e outro daquela geografia carnal. Da escadaria que a iniciava aos tanques de peixe ao final de sua cauda, contorcia-se e parecia assumir formas tão várias que jamais dei por conta de todas elas. Mãe Dolores vivia a cuidar de suas multicores escumilhas. Era uma mulher lindíssima em longos cabelos ondulados. Diziam-na cigana, porém nunca me quis ler a mão sequer, nem soube jamais de um pandeiro em seus requebros evocativos. O certo é que andava pela casa como se dançasse um pouco de tudo.
Pequeno Ansioso, ainda sem o saber, mostrava-se aplicado na maior das lições: deixar que tudo seja e desapareça.


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