VI - INVISÍVEIS TRILHAS
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A avó era uma ponte única entre todos. Por onde
andasse, tráfico mínimo de sombras ou enigmas, nada se mantinha - suspiroso,
altivo ou sorrateiro - sem que lhe cruzasse o íntimo, o despenhadeiro secreto
da concordância. Umas raras contas permaneciam a contragosto dela, ou por
resignação aos louvores divinos ou por haver chegado tarde ao selo do destino.
Não gostava que os treze filhos do velho Argemiro tivessem todos distintos
sobrenomes, como se não formassem uma família. Além do que desgostava que se chamasse
Carmem das Torres, não vendo ali senão uma das tantas ironias do pai, um velho
maquinista de trens e cenas familiares. Aos irmãos Chagas Domênico, Anselmo
Calamares, Alfredo Aquilino, somavam-se Florisvaldo Trigueiro, Sílvia dos
Santos, Alice Caviúna, até o caçula, Tomás Quintilha, cujo suicídio abalou a
todos. O que houve: trancou-se no quarto para ouvir Orlando Silva em altíssimo
volume, saboreando o vinho tinto ao qual adicionara um pacote de veneno para
ratos. Nenhuma pista, exceto que mancava de uma perna e rejeitava mulheres. Não
encontraram consigo cartas de amor ou mesmo algum livro aberto em enigmático
poema. Nada.
-
O marido da Sílvia dos Santos também se matou. A avó não gosta que fale nisto.
Ele tinha uma farmácia aqui perto. A mulher tocava o negócio com ele. Um dia
soube de escapadas dela com fregueses e até com um vizinho. Chamou um advogado,
destinou os bens aos filhos, sob a condição de que a mãe não morasse com eles.
E logo injetou ácido muriático nas veias.
-
Não entendo isto, Mãe. As desgraças não são concêntricas. Por mais que exista
um rastilho encantador unindo as coisas de igual signo, o colérico acorda
manso, o sadio morre dormindo.
Mesmo
com alguns enganos, a avó seguia-se ponte imensa com um transcurso obrigatório,
fosse a travessia revelação, agonia ou mera plenitude da obediência. A única
flâmula inaceitável era a da transgressão. Somente a ela cabia discordar de
algo. Não que fosse a primogênita do coronel Argemiro, mas por haver-se
descoberto uma guia dos estigmas, uma cuia que recolhia todos os desvios e lhes
dava melhores motivos.
Contudo,
não cuidava tão bem assim de seus aflitos. Mantinha com discretos exageros
queixumes e benevolências, ciente do enredo canhestro do pacto entre as próprias
filhas, assim como dos ardis com que Anselmo buscava subjugar Alfredo, os
irmãos que mais lhe assediavam.
-
Não há nada assim tão transparente, Mãe, como o rosto transtornado de um deus.
Não é simplesmente alguém que se deixa descobrir em seus nós, mas sim um
descalabro de corpos e sonhos e enigmas e ossos, uma torrente que empalidece ou
cega um mínimo gesto possível. As pontes não passam todas por quem as cruze.
-
A avó é uma ponte bem grande, já não o sabes?
-
Que não soube ir de um canto a outro de si mesma, ao que parece.
Para
Pequeno Ansioso algumas coisas iam se revelando em meio àquele cenário de
ludíbrios. As casas iam se tornando máscaras, roteiro de fugas, um filme
entrecortado de falas sem sentido. Não havia um único ponto de firmeza em tudo
o que tocava. De areia não era o castelo, mas sim os residentes. Não havia
propriamente uma fábula, mas antes um desregramento do ser em alguns
personagens dessa tragédia familiar. As histórias se dão independentes do grau
de riso ou lágrima que usurpam em volta do fogo. Fazem com que nos sintamos
personagens ativos, essa abnegada incongruência. Afinal, todo personagem é passivo.
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