sábado, 25 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo VI | Parte 29




VI - INVISÍVEIS TRILHAS


29

- Livros que fazem chorar são um tormento indesejável.
Quem conceberia a ideia de um tormento desejável? A frase sacudira Pequeno Ansioso. “Deus é mãe. Só assim pode haver panteísmo.” Era o que lhe diziam aquelas leituras. Quando todos os seres se arrastam sobre a terra somente a mãe se mantém de pé. Osires, Adad, Shiva, Tesup. Para cada um havia uma mulher que dançava e os conduzia ao diálogo com o mundo. Uma mulher que compreendia o que se passava dentro e fora do reino. Uma mulher que fecundavam e que recolhia os filhos perdidos por toda a terra. Uma mulher que lhes evitava que causassem maior desordem ao mundo. Essa mulher chamava-se Mãe. Horrenda Múltipla Divina Negra Puta Devastadora Prolífera. Mãe de língua pendente. Mãe de braços erguidos. Mãe ferida por toda a carne. Mãe com o corpo recobrindo tudo. Retalhada, conjurada, sublimada. Os números são pedras de jogo. Não expressam substância alguma. A matéria é susceptível a mudar de forma. Desvios e deformações não são propriamente uma escolha. Não importa se está frio ou quente, mas sim quem congela e treme ou arde e sua diante do tempo.
Como pode haver, mãe, um tormento desejável? Como posso ser narrador voluntário e protagonista de uma ação desfiada sem dar substância ao paradoxo? Lia um livro qualquer e chorava ou chorava e lia um livro qualquer?
- Quero sofrer apenas um tanto. Que me diga Deus que outro tanto pode ser salvo em nome desse sofrimento.
Quem diria isto? Os livros não nos tornam condenados a coisa alguma. Tampouco nos salvam de nada. São articulações oratórias, círculos de baba, códices restringidos, árvores, rios, nuvens. Não são senão reflexo do que fazemos de nós. Não podem nos levar a rir ou chorar ou incentivar ao crime ou causar pena ou nos impelir ao suicídio. Os livros são objetos de identificação. Não trazem novidade alguma. Não sugerem uma exótica ramificação de qualquer paradoxo. Não servem melancolia ou frenesi em seu prato de signos. Os livros não têm complexo algum. Os livros despertam interesses, são um caldeamento de sensações latentes. Não há sequer por que escrevê-los. Quando se tornam indispensáveis não é senão sinal de que uma sociedade decai. De uma certa forma os livros se chamam Mãe.







Nenhum comentário:

Postar um comentário