domingo, 26 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo VII | Parte 33 (Fim)

VII - UMA ÚLTIMA CHAMA?

33

Why cannot the Ear be closed to its own destruction?

William Blake

As vozes confundem-se todas, tormentosas.
Sonhos e pesadelos comparecem mesclados.
O que escutamos sob as raízes extraviadas
pode vir de qualquer um dos seres, terríveis todos.
“Já não importa”, dirão muitos, não se duvide.
A alguns outros aturdirá como uma destruição.
As vozes vêm todas com seus dentes de trevas,
e movem-se vertiginosas em fulgores horrendos.
Possuem línguas efêmeras que pouco se agarram
ao que dizem e quase nada ou nada afirmam.
Aterrorizam com uma cortante sucessão de incertezas.
“Basta atendê-las”, ouvimos por todas as partes.
Uns poucos: “Não querem menos que a imaginação”.
As vozes não conversam entre si ou sorriem jamais.
Sem um mínimo deslize, cuidam de seu encargo.
Não estão exatamente acima de quem as escuta.
Detêm, contudo, um método preciso de tremor e náusea,
a poção com que dissipar toda espessura da imagem,
um coágulo florindo em lugar dos sentidos.
Somem e regressam, as vozes e seus dilemas,
em cada noite de Pequeno Ansioso, frias e ásperas.
Proliferam porque dedilham o vazio, a palavra certa.
Terá mesmo conhecido o prazer aliado ao terror,
a loucura conjugada com a potência poética,
o entendimento do mundo disfarçado em leituras?
E o que fez dos rostos familiares, indescritíveis?
Quantas trilhas não terá refeito, apagado pistas,
até reter em si mesmo toda a essência do mundo?
As vozes comem sustos, agonias, dissipações,
as mesmas linhas em que o menino entrançou
memória e figuras esquivas, de estranhos nomes,
morada alguma, derramadas sobre intocável tablado.
- “Por que então devemos crer na existência aludida?”
- “O pranto talvez requeira sentido, porém não a dor.”
Eis um antigo diálogo, aviltado por alguma impertinência.
O eco se esquece da razão escoada de seu canto.
Somos nós a iluminar ou terrificar a imprópria noite.
De onde vêm as vozes? Do que somos, estridentes
fantasmas, somados ao que supomos e negamos.
Um livro selado, um ardil de vultos, um incêndio
na água caindo sobre um corpo suado, disforme,
uma solidão cheia de graça e que aligeire o fim,
um raro sustenido alcançado.
As vozes, as vozes,
poucas sabem como prolongar a alma, bem poucas.
Entre elas distingo algumas pernas do relâmpago:
um louco assediado pela infâmia e a inveja,
uma fraquejada montaria do inferno, o ouvido
afeito a toda sangrenta ruína, sofridos personagens:
Alfredo Aquilino, Mãe Dolores, Pequeno Ansioso.
Anjos fornicando virgens, eunucos de fita métrica
a buscar a dimensão exata do falo de Deus,
diabos alegóricos, perpétuos, grotescos, sublimes.
Sempre a mesma imagem: diante da morte, o céu.
As vozes em seu obscuro mandato, saliva de trevas,
numinosas ruínas, purulentas semelhanças.
A sós não escutamos senão o praguejar da dúvida.
Um corpo caindo sobre outro corpo e mais outro.
Qualquer mínima angústia requer um lugar,
o dorso de uma ave, uma luz crescente, a sombra
patética de uma imagem, as mãos queimantes.
- “O livro não é nada.” (Não se esperava outra fala?
O que nos faz voltar aqui?) “O menino é a soma
de todas as inquietudes da existência humana.”
Pequeno Ansioso e suas vozes, quase insondáveis.



[ F I M ]










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