III - MARGEM IMPERTURBÁVEL DO SILÊNCIO
13
"Nada
se compara ao amor que eu fiz.” Pequeno Ansioso repetia a frase, saltitante,
entre miúdos risos. “Nada se compara ao amor que eu fiz.”
- Vem cá. De onde é isso?
- Está em um livro que li: As sobras de Deus. A
mulher queria tudo para ela. O homem ia tomando algo de volta, aos poucos. Umas
coisas ela nem dava por conta. Queria seu amor. Ela dizia que era dele. Mas ele
é que foi fazendo com que fosse.
- Vai buscar.
De volta o menino, Mãe Dolores encostou a vassoura na
parede. Sentaram-se juntos no largo banco de madeira em um canto da copa.
- Lê um pouco.
- Quando teve o amor, disse para si mesmo: “Esta
é a minha emancipação. Agora posso fazer de tudo.” Sentia-se o tal, porque
havia entendido o êxtase. Andava nu pela casa, gesticulando alto.
- Ela também?
- Tem umas partes em que estão sempre sem roupas. Acho que
até andam pelo quintal, pela sacada, assim. Ela se dizia escrava da paixão.
Vivia ávida por algo, qualquer coisa, sempre. Ele a olhava com ares estranhos,
alternados. Acho que queria anulá-la, de alguma forma. Queria tornar trágico o
êxtase. Acho que o artista acaba por destruir tudo o que cria. Não quero ser
artista, Mãe.
- Quer ser o quê?
- Teu amor.
- Lê mais, safado. Depois te faço uma coisa.
Mãe Dolores punha-se no calção do menino. Sorrateira a mão
se aninhava com extremo zelo. Pequeno Ansioso fechava os olhinhos, trocava de
página, retomava:
“- O homem passou a ser uma visão para ela. O anúncio de
algo. A mulher já havia perdido tudo. Ele era o centro de sua catástrofe, porém
ela o tinha como a um deus. Gravemente enferma da mais profunda ilusão, começou
então a ser as sobras, os sobejos de uma divindade falseada.”
- Ela morre?
- Nada. Vai sofrer angústia e vertigem por muito tempo
ainda. Não é isto o que Deus faz com a gente? Leva tudo consigo e nos põe a
viver de espanto? Eu também não queria ser Deus.
- Queria ser meu?
- Eu quero gozar.
- Vou te fazer um mimo. Traz o livro junto.
Quase ao lado dos tanques de peixes havia um pequeno quarto,
para o menino uma misteriosa casa dentro de outra. A porta era guardada por um
pesado cadeado. Em suas andanças demarcara aquele cômodo isolado como sendo o
coração do mistério. Além da porta, havia uma janela igualmente cerrada. As
frestas na madeira carcomida só permitiam ver a profunda escuridão que habitava
as entranhas do enigma, sempre desperta, inconspurcável. Os dois pararam diante
da porta, Pequeno Ansioso com o apetite espigado sob o calção e um dedo entre
páginas do livro, como se marcasse algo para não esquecer.
- Espera um pouco.
Mãe Dolores voltava com a chave na mão. O menino sentia-se
lançado ao vazio. Insubordinação, pecado, quimera, a emancipação, de tão
próxima, o atordoava. Jamais teria imaginado a profana simplicidade com que se
tece um abismo. Aberta a porta, entrava no outro lado inigualável do mundo. Os
lábios deixaram escapar: “morrerei em condições espantosas”.
- O que é?
- Não sei ao certo. Devo ter lido em outro livro. Creio que
é o que o personagem diz quando o chão lhe falta aos pés.
- Um sinal de Deus?
- Um miolo de pão.
- Meu pequeno doido.
Mãe Dolores fechava a porta e a golpada da escuridão
celebrava novo triunfo. Todos os sentidos se concentravam em um só, estuário
das sensações miraculosas que passavam a reinar manhosas.
- Me dá o livro.
Ela cuidava com tato infernal de ambientar o desejo de
ambos.
- Deixa eu tirar o calção. A teus pés, Pequeno, não deixarei
que te falte nada. Vem com tua mãezinha. Quero ser teu poço, tua lua a brilhar,
tua guarda do labirinto.
Eis ali toda condição espantosa, a própria medula do
espanto. Jamais poderia imaginar que a verdadeira sensação de ser equivaleria a
sentir-se em parte alguma. O ponto extremo da inquietude. Mal se ajeitara em
seu casulo. O corpo sem noção alguma de tantos átomos à deriva. Julgando-se
autóctone e dado a falar com as plantas.
- Assim.
Tinha nas mãos todo o corpo de Mãe Dolores. Detinha-se nos
seios insaciáveis. Tremia e sentia os pés inchados, uma onda de assombros lhe
emaranhando o sexo. Tudo queimava e talvez jamais voltasse a ser um indivíduo.
Mãe Dolores apenas gemia, balouçante, lasciva, desfeita de toda cartografia.
- Mais assim.
- Mãe.
Foi quando a totalidade pareceu improvável. Animada por uns
pretextos carnais, abundava no relicário: crime, loucura, baixeza.
- Morde.
A escuridão era o centro de tudo. Pequeno Ansioso era um
cego rodeado de escuridão. Sofria e gozava escuridão. Lambia e fornicava
escuridão. Outra lei não havia. Não era mais o Pequeno Ansioso e todas as
formas ascendiam a um caráter difuso. A escuridão comerciava as mais diversas
formas de tremor. E epigrafava cromos cruéis, falantes farsantes, milharal do
pânico.
- Go fuck your mother. Your desire is your pain, damned child. Your flesh is burning. Your
spirit doesn't know where he went in. Everybody is the women of your life.
You’re the only serious dream.
Quem estava ali, além deles, estalando em meio ao braseiro
da escuridão? Murchava-se assustado o menino, já de todo fora do concílio
carnal de Mãe Dolores. Decaído por usurpação do trono.
- Mãe!
O que era tudo aquilo? Uma queimação trocando os sentidos da
vida. Uma erupção do indecifrável que trazemos dentro de nós. O menino não
tinha como pensar em nada. tremia por inteiro, de uma vez por todas perdido
integralmente de si. Mesmo o clamor era um estrépito desapegado, uma fagulha
perdida.
- You’ll never live
inside me.
(Não aguento de vontade de intrometer-me em tal maluquice. A
narração brilha a cada passo e não se sabe de onde vem. Nem mesmo quando falha
o narrador é lembrado. Talvez não passe de um funcionário público da tragédia,
do dramalhão, da comédia de costumes. Antes de pegar este emprego, conheci uma
gracinha de mulher. Estava de passagem por minha cidade e logo tratei de
mudar-me com ela para o lugarejo de onde viera. Era uma mulher ardente. Quando
se conhece uma mulher imersa em tanto fervor, é natural que ela seja mãe e Deus
e todas as formas à altura da imaginação. Cibele era assim, com longos cabelos
e o olhar feito um golpe de machado. Já no meio da viagem, no pouso em um motel
de estrada, a caminho de uma mítica Palhares, deu de falar comigo diferente.
Não em outra língua, mas em outro linguajar. Justo quando me encaixava em seu
íntimo e amassava-lhe o corpo e tremíamos… Em meio à cena tornava-se outra e
rejeitava-me como se não suportasse um instante, o mais célere, de felicidade.
Era um espírito sofredor, um lagamar purulento. Morava bem ali naquele corpo
que esvoaçava de ansiedade, crepitante na plumagem de gozos, e que veio pousar
em minhas mãos. Não sumia quase nunca. O diabo é entender que não se deve ficar
ali um minuto a mais. A plenitude é feita de uma exímia sequência de abandonos.
A insuficiência é ainda não haver perdido tudo o que se tem a perder. A perda é
o único sentimento que determina a existência de uma pessoa. Sofri mais de um
ano nas mãos dessa outra mulher que surgia sempre quando buscava Cibele para o
amor. Até que um dia fui embora. Entre enjoo e enojo, frustração e aniquilação,
tudo parecia o mesmo. As coisas nos encantam parecendo iguais, sempre. E assim
nos martirizam e traem.)
- Mãe.
- You’re nothing. You’ll
fall if I just raise my hand. I’m your anxious will.
- Mãezinha, responde. Brinca assim não.
Talvez a escuridão não soubesse o que tinha em suas mãos.
Pequeno Ansioso estava no centro do nada. Ou de nada. Queria uma palavra
cálida, uma ocupação vulgar, algo que o agitasse e justificasse todo aquele
suor. Quem estava ali?
- Mãe!
Ninguém respondia. Em nada repercutia seu dilema. Não
importava em que língua o insultasse, mas sim que estreitava laços rompidos com
algo de que era possuído e ainda desconhecia. Em pleno assombro, no entanto, só
tateava ausências.
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