quarta-feira, 22 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo V | Parte 23


V - ESCURIDÃO NUMINOSA

23

O início das noites era um novelo único. Mãe Dolores contava histórias. Pequeno Ansioso lia para ela algumas passagens secretas daqueles livros todos.
- O que tinha a avó ontem?
- Acordou de madrugada com um barulho. Percebera alguém mexendo na geladeira, um homem procurando comida. Havia entrado por aquela janela ali. A avó disse que era feio entrar assim na casa das pessoas. Fez com que ele sentasse e lhe preparou algo para comer. Conversaram o necessário, até que se fartasse e fosse embora. De manhã, um policial bateu à porta. Queria permissão para revistar a casa. Um criminoso havia fugido da prisão. A avó garantiu ao policial que não ouvira ou vira nada. Ao fechar a porta, foi ao quintal e viu ainda ali as grandes e fundas marcas dos pés do invasor. Foi preso no dia seguinte. Os jornais diziam que já matara mais de vinte pessoas.
- A avó lhe deu comida?
- Diz que conversou um largo tempo com ele, e até ofereceu umas roupas velhas do avô. O homem não quis nada, só comer. Quando a avó soube da prisão, tremeu-se toda. Não fazia ideia do tamanho daquele desabuso. Nem comigo, coitada. A avó também me deu guarida, coisa que não esqueço nunca.
- Também fugiste da cadeia?
- Não, mas deveria ter ido para lá se a avó não me ajudasse.
- Quero saber.
- Outro dia, querido. Dá aqui um livro. Lê uma coisa bonita para a Mãe Dolores.
O menino mesclava um pouco de cada leitura, somado à incurável imaginação. O livro aberto era só um paramento.
- Gotardo ouvia muitas vozes. Onde morava o conheciam como o velho das vozes. Era uma figura toda recurvada, e mais parecia arrastar-se pelas ruas. Sabia de tudo o que se falava em toda a aldeia. Não pelo vício da espreita. As vozes vinham todas dar com ele. Achavam-no, onde estivesse. O que para uns parecia um dom, para o pobre Gotardo era como se algo houvesse falhado em sua vida. Deveria gritar, mas não aviava um único ruído. Ao contrário, era assombrado por vozes de toda sorte. Ouvia confissões veladas, ameaças de morte, declarações de amor, rompimentos de acordo, a aflição de meninas curradas, blasfêmias, gozos, subornos, represálias, cânticos, bazófias. Nada lhe escapava ou evitar podia.
- O coitado era mudo?
- Não. A voz só lhe faltava ao tentar remediar o que ouvisse. Como ouvia de tudo, só conseguia falar de si.
- Será que ele está ouvindo a gente?
Ria, enaltecida pela inocência.
- Eu te ouvi essa noite gemendo enquanto dormias.
- Foi um sonho teu.
- É verdade que a mãe vê assombração pela casa?
- Como sabes disso?
- Devo ter algo de Gotardo.
- Não sei se é assim. A mãe vê sempre uma mesma aparição. Uma mulher silenciosa que surge no meio da noite, de seu lugar nenhum, encaminha-se até ela e fica ali por um tempo.
- A mãe fica com meu irmão a noite inteira acordada?
- Ele é insone, Pequeno. É parte de sua doença. A visão dura alguns instantes, sempre medidos. Depois se vira e segue até um determinado ponto daquele quarto. Indica com a mão algo sob o piso abaixo do guarda-roupa. O sinal também tem seu tempo preciso. Logo ela se volta e desaparece parede adentro, pelo mesmo lugar de onde surgira.
- Isto não é um sonho?
- Não. A mãe está sempre ali, cuidando do filho doente. Talvez seja o fantasma de alguém que guardou um segredo e agora quer recuperá-lo. Talvez um tesouro. Onde nasci as mulheres, algumas mulheres, recebiam sinais de botijas ocultas sob o chão. Escavavam e encontravam guardados valiosos. Umas entregavam tudo à igreja. Outras cuidavam melhor de si.
- O que fez a mãe?
- Nada. O pai não acreditava nessas coisas. Não quis cavar nenhum milagre para sua vida. A aparição foi se desvanecendo até sumir de vez.
- Não é engraçado? Nossas histórias são sempre uma curteza da vida, um cúmulo de impossibilidades.
- Nos livros também?
- Mas não deve haver diferença entre o que está escrito neles e o que vivemos. É que nem sempre compreendemos o que se passa conosco.
- Os livros não são histórias?
- Tanto quanto a vida. Se digo que Gotardo é um tio meu e que li em um livro a história de um tal Alfredo Aquilino, o que muda?
- Assusto-me com uma coisa e divirto-me com outra.
- Li em um livro: Heitor retornava para casa com sua jovem mulher. Um acidente de trânsito forçara-lhe um aborto. Abraçado a ela, enquanto um cunhado os trazia de volta do hospital, não percebeu estranheza alguma até ouvir a sentença gutural proferida pelos lábios da mulher - “matei um filho teu e matarei quantos teimes em fazer” -, tudo em um estrondo momentâneo de sentidos. Assustara-se ainda mais ao reconhecer na esposa a voz de Berenice, com quem primeiro vivera. De onde a fala? De onde o fato?
- Eu conto as histórias que aconteceram. Não quero saber… desse sumiço que dá na gente. O que fazes agora é provocação, não quero saber mesmo. Eu tinha esse sumiço e quando voltava… não sabia por onde andara. Não quero…
- Mas isto é uma história ou é tua vida?
Agora sim, provocava, explorava-lhe a súbita disfasia, um disparate de queixumes.
- É tudo junto. Mas não sei de onde vem. Uma mulher me disse uma vez que eu seria “a protetora”. Dizia assim, destacando bem: “a protetora”. Só conseguia me apaixonar por homens casados. Era um ensaio de inferno: constrangimentos e dissimulações. Vivia um enxame de relações frustradas. Recomeçar passou a ser o aspecto mais odioso de minha vida. Dei-me a bonitões de toda sorte, andantes, párocos, salafrários, matreiros de casaca. A todos “protegia” contra mim mesma. Precisava de uma escuta, evocar a natureza de uma escrita ulterior. Uma outra mulher me disse ser uma combatente de homens. Seu nome era Berenice. Já sabias disto, droga.
- Juro que não.
- Que nada.
- Sério, Mãe.
- Eu disse a ela que queria sua guarda. A partir de então dei de ser sumidiça de meus atos. E o dia a dia recolhia as mortes sorteadas pelo escurecimento de minha memória. Fui sumindo de mim e ressurgindo informada de um perturbador extermínio. Três mortes. Gente que nem conhecia direito.
- Não sabias fazer algo?
- Minha mãe me ensinara a cozinhar. Os melhores temperos, sem mesmo dar por conta.
Na verdade indagara sobre alguma providência que lhe parecesse urgente tomar, porém deixou a conversa tomar um outro curso.
- Foi como dei de trabalhar. Estava há uns dias na casa de uma amiga da avó. Ela estava lá. As duas conversavam sobre desconfianças. O marido merecia a morte que lhe dei, que alguém em mim lhe deu. Mas só me lembro dele querendo me amarrar, um mal hálito horrível, os olhos famintos saltando sobre mim. As duas mulheres chegaram ainda ao quarto com o jorro de sangue.
- Mataste o velho?
- Eu me recobrava e me recobria, pasma, gaguejando inconsciência ante a indiscutível cena, pontos arroxeados no corpo, a faca de cortar papéis ao meu lado. Ouvi a voz da avó, surpreendente: “deixa ela ficar comigo”. O que a avó viu em tudo isto, em mim?
Pequeno Ansioso põe a mão de Mãe Dolores em seu rosto. Leva-a de um lado a outro, descendo ao pescoço, dando-lhe volta. Não ouve nada. Segue guiando-lhe a mão a caminho do umbigo. Passeios circulados. Mansidão improvisada. As duas mãos descendo, já cúmplices, quase uma só. As pernas se abriam como um portal do fogo, ansiosas pelo ritual. Dez dedos encostavam-se pelas bordas. Era tudo o que havia: bordas e dedos. Nenhuma voz sumia ou ressurgia. Nenhuma visão dava-se em estardalhaços. Nenhum crime sonhado ou relatado no engodo da memória. Não havia descuido. Era transvasada por um hino, suores, uma recitação do inferno, gemia…
- O que quero que comece aqui…
Era nada. Os dedos passando em triunfo, um círculo de desafios, ir e vir, lábios soletrando cada mínima narração, vigília do abismo, a escrita não é nada até que lhe assine o júbilo, leis sagradas, sofismas, meandros da profanação, não importa. Os dedos se ambientavam e dentre eles um mais aguerrido distinguia-se investigante. O que teria ali? Quantas vezes o infortúnio repete a mesma palavra, uma só, a mesma, a irritante, nunquismática? Melhor não saber. Seguiu friccionando, mesmo assim. Mãe Dolores contorcia-se, vibrava as pernas, o corpo inteiro, sofria constrita, agarrada com todo o sexo a esse ritual purificador. Nenhuma folha tardia, uma fala que tenha fugido ao ponto, bem dada, querente de que tudo passasse por si. Justo ali. Só um corpo deitado. Que história melhor contar? Era noite já grande, então.





Nenhum comentário:

Postar um comentário