quinta-feira, 16 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo IV | Parte 18



IV - ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS


18

O pai viajava muito, mas deixara-lhe uma alentada biblioteca, repleta de livros, traças, revistas. A mãe vivia às voltas com os cuidados exigidos pelo irmão mais novo, com suas deformações genéticas. Pequeno Ansioso amiudava os dias revezando as casas dos pais e da avó materna. E embalava-se nos braços desta e de Mãe Dolores. A descoberta de Alfredo Aquilino lhe urdiu uma urgência de vida. Quando estava na casa dos pais, os livros lhe eram o abismo inigualável. Quando na outra, aconselhava-se com a bela Dolores, douta em profanos assuntos. Aquilino lhe dava a compreensão do não-lugar que habitava. E trazia para diante de si um novo mistério: a vontade de ser.
O tio mantinha consigo, em invisível algibeira, um tufo de estranhezas. Até atingir a idade adulta, sua vida é uma incógnita. Nenhum parente recorda-se de nada. Sabe-se que escrevia versos. Um dos doze irmãos, convicto de idêntica atribuição divina - depois se soube que mais vassalo do trocadilho do que feitor da essência poética, como se orgulhava de ser -, animado por uma crença de que cada família suportaria apenas um único poeta, aviou-se a fraudar o ânimo de Aquilino, atribuindo-lhe astuciosamente uma fragilidade racional que acabaria sendo habilmente diagnosticada como distúrbio patológico.
Não é novidade que a inveja seja a base da loucura alheia. Não se trata de derrisão do destino, mas sim de solecismo da realidade. Uma briga entre guardiões, decerto. O fato é que Alfredo Aquilino foi dado como louco. Seus versos, sem que houvesse míngua, foram desacreditados. Sua palavra não contava para mais nada. O irmão aprimorou-se em falsetes e logo acedeu a todas as baixezas do encômio. Em brevíssimo tempo, Anselmo Calamares tornou-se o inquestionável poeta da família.
Pequeno Ansioso já conhecera Aquilino solapado em suas convicções. Em visitas à casa de Anselmo - anotações mínimas dos passeios pela vida com o pai -, o ouvia falar de Houdini e Claudel, prestidigitadores capazes de tornar Deus ainda mais pobre de si. Talvez a poesia carecesse de demônios mais audazes, que não se esgotassem em ansiedades tão vulgares. O menino então via em Aquilino uma negação de toda fajuta aspiração de seu irmão. Não lhe era um deus, propriamente, mas antes a aventura do reconhecimento, do proveitoso diálogo quase consigo mesmo. Não deixava de ser, já se sabe, um desconto em relação a tanta obscurecida vertigem.
- O tio não vem…
Pequeno Ansioso era tomado por uma incerteza dos diabos. Nada possuía sabor ou textura definida se acaso em uma manhã miúda faltasse ao encontro ele ou Alfredo. Resmungava em voz alta, batendo em tudo que achasse pela frente.
- O que encontro em um livro pode ser apenas farsa, sua própria farsa. Quando se ateia fogo ao corpo de alguém o que queima é apenas o que lhe dói, o que perde, o que sofre. Nenhuma morte significa além da dor. Não morro dos outros. Morro de mim.
O menino vivia na beirada do trágico e seu relicário de últimas possibilidades. Pouco se interessava pelas glórias da inquietude. Hegel, Descartes, quaisquer dos anjos caídos, sentava-se à mesa com todos, desde que o diálogo estivesse acima da languidez ou da felicidade envaidecida de si. Quase nunca ria. “Não há mais jeito no ser que sê-lo”, dizia. Era um fedelho de apenas treze anos. Já não suportava ter que ir à escola. Ajuntava-se então aos baderneiros de toda ordem…
- …uns tontos que respiravam ar melhor que os presbíteros da turma. A felicidade sobra de todos os lugares. Ninguém a alcança. Habitualmente somos uma ou outra vertente.
Pequeno Ansioso não pretendia levá-las em conta. Recusava-se a aceitar que a vontade de ser não passava de um elemento apedrejado pelo acaso.
- O tio virá amanhã.




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