IV - ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS
18
O
pai viajava muito, mas deixara-lhe uma alentada biblioteca, repleta de livros,
traças, revistas. A mãe vivia às voltas com os cuidados exigidos pelo irmão
mais novo, com suas deformações genéticas. Pequeno Ansioso amiudava os dias
revezando as casas dos pais e da avó materna. E embalava-se nos braços desta e
de Mãe Dolores. A descoberta de Alfredo Aquilino lhe urdiu uma urgência de
vida. Quando estava na casa dos pais, os livros lhe eram o abismo inigualável.
Quando na outra, aconselhava-se com a bela Dolores, douta em profanos assuntos.
Aquilino lhe dava a compreensão do não-lugar que habitava. E trazia para diante
de si um novo mistério: a vontade de ser.
O tio mantinha consigo, em invisível algibeira,
um tufo de estranhezas. Até atingir a idade adulta, sua vida é uma incógnita.
Nenhum parente recorda-se de nada. Sabe-se que escrevia versos. Um dos doze
irmãos, convicto de idêntica atribuição divina - depois se soube que mais
vassalo do trocadilho do que feitor da essência poética, como se orgulhava de
ser -, animado por uma crença de que cada família suportaria apenas um único
poeta, aviou-se a fraudar o ânimo de Aquilino, atribuindo-lhe astuciosamente
uma fragilidade racional que acabaria sendo habilmente diagnosticada como
distúrbio patológico.
Não é novidade que a inveja seja a base da
loucura alheia. Não se trata de derrisão do destino, mas sim de solecismo da
realidade. Uma briga entre guardiões, decerto. O fato é que Alfredo Aquilino
foi dado como louco. Seus versos, sem que houvesse míngua, foram
desacreditados. Sua palavra não contava para mais nada. O irmão aprimorou-se em
falsetes e logo acedeu a todas as baixezas do encômio. Em brevíssimo tempo,
Anselmo Calamares tornou-se o inquestionável poeta da família.
Pequeno Ansioso já conhecera Aquilino solapado
em suas convicções. Em visitas à casa de Anselmo - anotações mínimas dos
passeios pela vida com o pai -, o ouvia falar de Houdini e Claudel,
prestidigitadores capazes de tornar Deus ainda mais pobre de si. Talvez a
poesia carecesse de demônios mais audazes, que não se esgotassem em ansiedades
tão vulgares. O menino então via em Aquilino uma negação de toda fajuta
aspiração de seu irmão. Não lhe era um deus, propriamente, mas antes a aventura
do reconhecimento, do proveitoso diálogo quase consigo mesmo. Não deixava de
ser, já se sabe, um desconto em relação a tanta obscurecida vertigem.
- O tio não vem…
Pequeno Ansioso era tomado por uma incerteza dos
diabos. Nada possuía sabor ou textura definida se acaso em uma manhã miúda
faltasse ao encontro ele ou Alfredo. Resmungava em voz alta, batendo em tudo
que achasse pela frente.
- O que encontro em um livro pode ser apenas
farsa, sua própria farsa. Quando se ateia fogo ao corpo de alguém o que queima
é apenas o que lhe dói, o que perde, o que sofre. Nenhuma morte significa além
da dor. Não morro dos outros. Morro de mim.
O menino vivia na beirada do trágico e seu
relicário de últimas possibilidades. Pouco se interessava pelas glórias da
inquietude. Hegel, Descartes, quaisquer dos anjos caídos, sentava-se à mesa com
todos, desde que o diálogo estivesse acima da languidez ou da felicidade
envaidecida de si. Quase nunca ria. “Não há mais jeito no ser que sê-lo”,
dizia. Era um fedelho de apenas treze anos. Já não suportava ter que ir à
escola. Ajuntava-se então aos baderneiros de toda ordem…
- …uns tontos que respiravam ar melhor que os
presbíteros da turma. A felicidade sobra de todos os lugares. Ninguém a
alcança. Habitualmente somos uma ou outra vertente.
Pequeno Ansioso não pretendia levá-las em conta. Recusava-se
a aceitar que a vontade de ser não passava de um elemento apedrejado pelo
acaso.
- O tio virá amanhã.
Visite a nossa loja
Nenhum comentário:
Postar um comentário