II - CÉUS REMOTOS
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Adorava quando íamos
àquela casa. Um sinuoso caminho desenhava-se como a aventura maior em dias tão
iguais. Um velho me aguardava para o jogo de cartas. Sempre ouvia a mesma sentença:
-
Não te esqueças, menino: ele não deve ser contrariado.
Claro
estava que o vício maior não era o relancinho, mas antes o ludíbrio. Não podia
suportar o mundo sem uma boa trapaça. Certamente havia sido um mestre entre
burlões, hábil histrião no remate de ilusões. Com o tempo, já bem velho, dera a
cartada final: ensandecia quando contrariado, dava de berrar e jogar ao chão
tudo o que encontrasse pela frente. Todos em casa se deixavam levar por aquele
último golpe. Nada ou ninguém deveria contrariar o Coronel Argemiro. As mãos
trêmulas agiam sem precisão ou elegância. O roubo não era mais ilícito,
protegido agora por estatutos ainda mais cínicos.
-
Olhe ali, menino.
Apontava
com o dedo. Ao meu olhar desviado, engordava a mão de cartas. Todos na casa
endossavam-lhe a insolência ao converter velhacaria em infância reconquistada.
“Naquele tempo, para ele, conquistá-la não foi tão simples”, diziam as filhas,
imprudentes. Agora se vinga de tudo. Talvez fosse esta a razão de minha admiração
por aquele patife. De alguma maneira eu me divertia sendo trapaceado por meu
bisavô.
-
Pronto, pronto. Já chega de jogo por hoje.
Ir
vê-lo era um hábito que preenchia as tardes de sábado. Lindalva era a pessoa
mais nova da casa. Cuidava de tudo, da comida e das estranhezas de Argemiro. O
velho consumia as horas do dia em um relicário de rabugices e artrites. Fumava
desregradamente cigarros sem filtro, e tossia como se expurgasse a própria
alma. Logo descobri que até mesmo a patente que ostentava era uma farsa. Não
passava de um amalucado chefe de estação ferroviária, que obrigava a todos a
chamá-lo de Coronel. Lindalva dava-lhe banho e o punha na rede, bem penteado.
Aquietava-se atento à voz dela, lendo François Villon: “Je plaings le temps
de ma jeunesse, / Ouquel j’ay plus qu’autre gallé…”
Indaguei-lhe
algum dia a razão daquela leitura em francês, alegando não compreender o que
diziam os versos.
-
Uma bobagem qualquer sobre a juventude. Tenho tudo isto de memória. Mas gosto
de Lindalva esquartejando o ritmo do poema, o olhar mal disfarçando horror e
temeridade diante da ingrata tarefa. É com o que mais me divirto. Os poemas já
não me interessam tanto.
Na
varanda balançavam-se em cadeiras três de suas filhas. Desfiavam os queixumes
de sábado. Ali fui recolhendo sombras, vultos, fantasias, como figuras de um
álbum de recortes. Aos poucos tornava-me íntimo de parentes que ainda não havia
conhecido. Ouvia contadas histórias de Alfredo Aquilino, o louco irmão, segundo
diziam. Entre elas, a dos nós que deu nos cabelos de uma mulher, no ambulatório
onde ambos se encontravam, enquanto esta dormia. Chateara-se porque a infeliz
não lhe quis ouvir uns poemas. As irmãs desfilavam aflição. Nutriam pelo irmão
uma benevolência assustada, sem um zelo mínimo de afago. Eu ria guardado em
mim, ansioso por conhecê-lo.
Uma
tarde, enquanto ainda ouvia a voz de Lindalva:
Hé Dieu! Se
j’eusse estudié
Au temps de
ma jeunesse folle,
Et à bonnes
meurs dedié,
J’eusse
maison et couche molle
Mais quoy?
Je fuyoie l’escolle,
Comme fait
le mauvais enfant…
En
escripvant ceste parolle,
A peu que le
cueur ne me fent.
Deus
deve ter se entretido com os versos de Villon ou a displicência indisfarçável
de quem os lia, trotando um francês coxo, e não deu por conta de um verdadeiro
ato seu: um homem ateando fogo em si mesmo. Era o que se ouvia:
-
Corre a ver o que se passa com esse cheiro de queimado.
-
Alfredo, Alfredo, meu irmão!
Batiam
na porta do último quarto ao final do corredor e a fumaça desarranjava o pôr do
sol. Em meio ao pânico desatado, o que parecia repudiável era a ameaça à
parcimônia de uma tranquilidade apeada naquelas tardes. Mas parecia mesmo haver
algum fogo.
-
Com que diabos…!
O
Coronel acendia mais um cigarro e resmungava. Era uma correria desmedida.
Lindalva tentava acalmá-lo. As três irmãs afligiam-se.
-
Ah meu Deus, o que terá feito ele?
-
Alfredo, abre essa porta. Abre, por favor.
Lindalva
saltava de seu posto:
-
Melhor chamar seu Conrado. Não há quem possa arrombar uma porta entre nós.
-
Quero o meu Villon…
-
Coronel, é seu filho, Alfredo, que está pondo fogo na casa.
-
Pois que o faça. Que diabos me importa o fogo… Sem meu Villon eu me cago todo.
-
Alfredo, anda, abre a porta.
-
Calma, Coronel.
Logo
chegou o jardineiro que trabalhava na casa de Conrado, o vizinho de frente. Era
perto das seis. Não haviam servido a fornada costumeira de pastéis, ladeada
pela jarra de suco. Começava a ficar com fome.
-
Não!!!
O
velho começou a peidar alto e a sujar-se por inteiro. Bramia em francês irado e
banguela:
Je plaings
le temps de ma jeunesse,
Ouquel j’ay
plus qu’autre gallé…
-
Ah meu Deus!
Aníbal,
o jardineiro, esmurrava a porta, espancava e esmiuçava as reais condições de
socorro.
-
Daqui não se passa, senhoras. Não faço ideia do que tenha por trás.
Lindalva
não suportava tanta atribuição e fedor.
-
A janela, a janela…
Correram
todos. Ficamos, o velho cheio de merda e eu, sem nada entender. Fui atrás de
ar, ainda sonhando com meus pastéis. O musculoso jardineiro acabara de arrombar
a janela.
-
Graças a Deus!
-
A mangueira, rápido. Traz a mangueira aqui.
O
guarda-roupa havia sido empurrado até a porta. O fogo ateado nas roupas. O ar queimado
por completo. Empurrado o móvel, aberta a porta, um corpo desacordado na cama.
-
Villon… Villon… ou me…
O
velho já estava como ameaçara, o que tornou o rastilho de incêndio um drama
menor naquela tarde de rapinagens em que acabei sem os pastéis. Olhava, no entanto,
o célebre e desorbitado Alfredo Aquilino, fidedigno ao falatório a seu
respeito. Era uma figura marmórea, quase fúnebre, mas certamente pude entrever
ali - ou fantasiar, decerto - uma reserva incurável de lucidez.
A
esta altura a tarde já havia caído de si. A avó tinha que voltar, e me fui dali
o estômago roendo de fome, marcado pela ventura de haver conhecido o tio tão falado.
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