quarta-feira, 15 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo II | Parte 5



II - CÉUS REMOTOS

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A rede armada ao canto. O imenso quarto era da avó, onde eu dormia, ante o enigma de duas portas que me assustavam. Aquela era uma imensa casa tomada de portas por todos os lados. Percorria-lhe os capítulos sob o signo da ansiedade, do quase-dogma, da verdadeira aventura por desvelar novas reentrâncias e desnudezes da matéria de que era feito aquele meu mundo. Algumas passagens me eram vedadas. Outras, de tanto ouvir bagaços de conversas, descuidos de rumores, exerciam sobre mim uma descortinada sensação de temor.
Ao lado de minha rede havia duas portas mantidas fechadas. Davam na sala maior, o grande cômodo onde reinava a ocultação-mãe. Tudo era mistério ali, e o piano, enfurnado em tal gruta, assemelhava-se a um dragão, sempre dormindo, cuja lenda apregoava que, de tempos em tempos, despertava a exigir uma virgem em sacrifício, sob a ameaça de aspergir uma ira flamejante por toda a aldeia. Talvez eu gostasse de ver as coisas pelo lado oposto. O inacessível era o terreno em que me sentia mais à vontade. Ouvia histórias sedutoras, entre confusas e improváveis:
- Os dois guardas estiveram aqui ao fim da tarde. O moleque havia entrado em casa, não se sabe por onde. Parece que ia roubar de tudo durante a noite. Pegaram-no escondido detrás do piano. Não sei quem viu. Deve ter sido a maluca que cuida dele.
- Uma noite acordei com aquele piano. Tocava uma música consternada, uma angústia, um aperto enorme no peito. Assustei-me. Saí procurando quem era. Dormiam todos. Engolindo o susto, entreabri a porta da sala: a coisa tocava sozinha, toda fechada.
- Aquele piano é o diabo. Acho até que nem existe.
Mantinha-me às voltas com o imperativo: o que existe? Como não confundir a semelhança com a inexistência? O que somos é o que existe ou o que desejamos? O piano existia de fato ou de vertigem? Se o via ou entrevia quase todo dia, jamais o ouvi, no entanto, sendo tocado. Ouvia, isto sim, as histórias dedilhadas por toda a casa:
- As duas irmãs ganharam o piano do pai. Viviam a disputar valsas e noturnos. Com a morte do velho Antunes, fizeram um pacto. A primeira a se casar jamais voltaria sequer a espaná-lo. Logo casaram-se ambas, porém uma das alianças não durou muito e meses depois a mais velha voltou para casa, desfeita em mágoa e mistérios.
- Apanhava do marido, a zarolha, essa é a verdade.
- Fugiu de casa em plena noite, depois que ele a quis sufocar com o travesseiro.
- Deixa eu contar… Era estrábica a irmã e voltava para casa, infeliz. Chorava pelas noites adentro, pronta para morrer pela falta de um homem. O desmazelo alastrava-se e ninguém o interpelava. Para aquietar-se, pediu então à irmã o piano de volta.
- Dane-se o acordo?
- Sim, claro. Era aquilo da felicidade que exige sempre sacrifícios. A irmã mais nova sentia-se aturdida pelo peso da felicidade conjugal. Aquiesceu de vez.
- O piano retornou à casa de origem?
- Não, nunca chegou a mudar de lugar. Sequer houve tempo. De alguma forma, o destino ardia em febre. Tudo completamente improvável. O piano era a borda inconciliável de uma vida qualquer.
Ouvia e ouvia histórias, sob todas as condições. A vizinhança impregnava o juízo por toda a cena. Vinham me dizer coisas, surpreendia falatórios, topava com pretextos infundados, maneiras e enganos intercalados. No entanto, jamais ouvi a mãe tocar piano. Se é certo que nossa existência atropela-se à procura de provas… Há inúmeros casos injustificados de papéis que são sofridos e martirizados e… Os fatos se dão cegamente, medulares, periféricos, impossíveis… O acaso torna risíveis todos os valores…
As vozes seguiam pela casa, encascando a memória, futricando por toda a umidade do entendimento:
- A caolha escalava o piano em busca da felicidade extraviada.
- Só a desventura quer dormir com Deus!
- Não havia música nos dedos daquela mulher. A mesma meia dúzia de boleros entrevados enjoava as festas de família.
Nem mesmo uma única vez, jamais ouvi a mãe ao piano. Sequer o álbum de família trazia fotos dela em fugas ou sonatas. Que piano, afinal, havia tocado um dia?



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