II - CÉUS REMOTOS
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− As idades se misturam na memória. Não havia propriamente a
ideia de uma novela. Quando tudo é memória, nada mais é memória. Memória,
memória, memória. O homem é a única catarse possível. Afeiçoa-se a destilar a
compreensão de si mesmo: um pai velho entregue à solidão, irmãos desamparados,
os filhos distantes.
Alfredo Aquilino mantinha os olhos fixos no teto
enquanto falava com vagar cada palavra.
− Impressionava-me que trouxesse tudo aquilo de
memória. A cunhada havia ido embora, levando consigo toda a mobília da casa,
talheres, quadros, piano, mesas, o cão, tudo, tudo mesmo. Renunciara apenas aos
livros do marido, às imensas prateleiras carregadas de livros. Aquele santuário
certamente significava o centro da ruína de seu casamento. A renúncia era a
afirmação de um desprezo. E para que não morresse de sede o poeta, deixara
também uma moringa d’água. Alfredo imaginava o monólogo que certamente teceria
o irmão, tão logo os olhos se amoldassem ao vazio do cenário.
(- Como disfarçar vergonha extrema? Como evitar que saibam o
que houve os filhos e irmãos e amigos? Como me sentir amanhã tendo os alunos
diante? E com tantos, o que fazer, com os que me espreitam cada partícula de
vida e sonham rindo com minha queda? Por que terá ela feito isto, em meio a
tantos anos de apaziguado casamento? Não tocava a sós aquele piano
melodramático? Amigas emplumadas e ridículas, acaso não tinha as suas? E não
cuidava dos horrorosos canapés de tantas e tantas e repetitivas festas, nas
previsíveis e lastimáveis datas, todas? Vivia, isto sim, a abusar de adjetivos.
Como achar então que tudo em nossa vida era seu, exceto os livros e aquela
afrontosa moringa? A quem confessarei minha dor? Como Adelaide poderia pensar
que tudo o que eu sentiria diante do vazio seria sede? Como entupir-se de tanta
mordacidade?)
Seguia olhando para o teto, encarando um invisível monstro
dependurado sobre nós. A voz encarnava a do irmão, em um ritual desconcertante.
(- Os filhos decerto apoiarão a mãe. Dirão impiedosos de
minha permanente ausência. Também eles a pensar que livros e livros e uma
moringa d’água são alimentos suficientes para um poeta. Criamos filhos para
tanto? Para afinal julgarem o pai e não simplesmente apoiá-lo? Já sei que
minhas irmãs dirão que negligenciei o casamento. E isto dirão justo aquelas que
jamais casaram. Os amigos mais cruéis serão os cercados de adoráveis
concubinas. Já lhes ouço os risos cortantes. Da moringa bem imagino o quê. E o
que levas de tudo isto, minha confusa Adelaide? Talvez tenha guardado,
confesso, as melhores exclamações para meus versos. Mas todos traziam teu sabor
inconfundível. O que mais poderias querer? Não fui teu grande cantor? O que são
as musas? É tão pouco assim o que te dei e que agora trocas por nada? A conta
bancária, os móveis, a cumplicidade dos filhos, pensas mesmo que tudo define
tua vida e anula a minha? Talvez o Rembrandt legítimo em sua ronda noturna. Mas
não lhe repetirei a miserável vida nos últimos anos. Não procurarei mulheres
entre músicos ou qualquer outro tipo de círculo de vagabundos. Farás isto,
tenho certeza. Os filhos ficarão contigo, embora já bem crescidos os
falastrões. Tão-somente sentirei imperturbável saudade daquele sábio exercício
de iluminação de uma cena: o raro Rembrandt que tínhamos na parede da sala.
Pensas que te foste com toda a luz? Que tonta, Adelaide, o que te passou pela
cabeça? Que eu não poderia viver sem ti?)
Enquanto falava, por vezes tendia a transtornar-se. Abria um
disperso sorriso. Suspirava um tanto, logo recuperando a própria voz.
- Certamente um dia transformará tudo aquilo em
um de seus indefectíveis poemas. Já imagino a vazante pouco gustativa das
imagens. Pobre poeta, meu irmão. E agora um trapo, uma cárie, um esgoto
entupido, abandonado pela esposa. Esquece que fez tanto por essas metáforas extenuadas…
Em um outro dia, mostrou-me as páginas
arrancadas de um caderno, a letra trêmula, garranchosa. Pediu-me que lesse em
voz alta.
(Chego da
aula e encontro a casa completamente vazia. Assusto-me. Penso em assalto. A todo
instante se rouba. Decerto sou parte disto. Entro na biblioteca e ali estão
livros, todos, mesmo os espalhados por um lado e outro, agora desajeitadamente
acondicionados em algumas prateleiras. Em um dos cantos do cômodo, uma moringa
dava sinal de que assalto não houvera. Imperava solitária e vítrea, em meio a
nenhum outro móvel. Sequer o telefone. Como dar pelo havido e deslacrar tal
enigma?)
- Quer o
suco agora, meu irmão?
Balançava
a mão, negativamente, agitado com a interrupção da irmã.
- Leia de
novo. Não. Aquilo do telefone é uma graça. Ele não sabe passar sem um telefone.
O dia só se justifica quando liga para alguém e diz: “ouça que estou fazendo o
dia”. Idiota. Deveria dizer, quando muito: “ouça o que estou fazendo do dia”.
Continua dali.
(Ligar
para os filhos a indagar o quê? Enquanto isto, que vinho tomar, que tango
ouvir, em que poltrona aquietar-me? Dar pela falta dos tecidos imutáveis de que
é feita cada vida leva o mesmo imprevisível tempo que fiá-la. Aos poucos
algumas aflições foram golpeando a tez da realidade, em decursivo rondel: quem
me faria os hábitos da mesa? Quantas cartas teriam hoje chegado? Os versos de
fim de noite, onde os comporei? Amigos recriminam que tenho publicado livros
demais. A caminho de casa, entretanto, ideias tantas me surgem sempre, e tantos
poemas, tantos… Talvez seja um poeta de imagens demasiado simples, confesso.
Hoje mesmo vinha pensando em uma ode ao homem imóvel na praia, vinha já com uns
versos prontos: “esta manhã um homem estava imóvel na praia / com toda a vida
salgada por silêncio e infortúnio”.)
-
Alfredo, toma o suco…
- Merda,
merda, merda… Ele vai exasperar-se e dizer que é um homem tão simples, um merda
tão simples. Não pára de ler.
A avó não
fazia ideia do ritual que estava interrompendo. Eu seguia lendo.
(Tenho
sido um homem tão simples. Os poemas não passam disto: um reflexo de nossa
simplicidade diante da vida. Os poetas somos todos a encarnação do puro
Francisco. Nos desfazemos de tudo em um exercício diário, permanente. Nossa
tragédia vem de nossa abnegação. Desejamos profundamente que todos os homens
sejam felizes. E o desejamos com nossos versos. Por que então arriscaria algo
contra meu amor? Com amor componho minhas odes e versos mínimos. Diante daquela
moringa me sinto julgado por crimes sequer pensados. Não teria dado a Adelaide
toda uma vida? A que devo minha lástima, irrefletida, desassossegada,
entontecida? O que peço à minha memória que desvele sem trama? É certo que
raramente a procurei como a uma mulher deveria seu homem procurar. É provável
que desconhecesse muitas de suas sílabas, possivelmente as mais crepitantes,
jamais por mim debulhadas. Mas era uma deusa a luniforme Adelaide. Apunha signo
a signo. Podia escrevê-la com os cabelos em versos, as volutas intermitentes,
os lábios tomados de seiva sugerida pelo hálito. Adelaide parecia benzer cada cadinho
de espaço que seu espectro preenchia. Possuía diabólica santidade.)
-
“Diabólica santidade…”. A mulher era insaciável, e a lubricidade desprezava
qualquer sublimação retórica. Olha a tolice que ele vai dizer agora:
(Lembro
do vinho com que me procurou certa noite para um banho. Estava tão embevecido
de Verlaine. Sedução possível não havia mais. Toda a embriaguez do mundo estava
ali, nos versos. Batia palmas para Verlaine e não me acendia Adelaide fogo
algum. Talvez fosse o maldito piano que acreditava parte de si. Sim, sim, era o
piano, não resta dúvida, a mínima. A todo instante cercava-me com uma sonata estilhada.
Tantas histórias poderia contar, mistérios e dissabores essenciais, embaraços
da paixão, viços de personagens que me inspiram, lembranças, não mais… E as
insípidas sonatas acesas até altas horas. A poesia já trazia consigo toda
música. Adelaide a desmerecia com aquela versalhada teclada.)
- E toda
a parvoíce que benze com a água pútrida em nome da poesia? Reduz-se a nada. Não
compreendeu jamais a coerência do ardor de Adelaide. Daquele corpo eu
arrancaria toda a alma do mundo.
(Por que
se perder em acordes tão frágeis? Era um absurdo, aquilo. Em algumas festas de
família, as primas pedindo para ouvir o piano. Um Schubert mal dedilhado despertava
atenção que um Valéry autêntico sequer suspeitaria. Jamais li meus poemas em
tais festas. Entre a inúmera bebida e os indeclináveis canapés, todos preferiam
as histórias alheias, e me pediam que contasse a trágica morte de Isadora ou
detalhes do desengano de Padre Ramírez. Quem conta histórias não pode ter a sua
própria narrada, exceto se a enovela no fio das demais.)
- O
safado não entende que ganho é conquista e não herança ou trapaça. Fala sempre
em prêmio, subordinando tudo na vida a um mero reconhecimento da reles
existência. Palhaço… Lê o resto.
(Vejo
agora que não eras nada em minha vida. O que lamento então? Quando escapamos
milagrosamente de um acidente aéreo, de retorno ao lar após larga viagem,
tínhamos tão-somente um ao outro. Abri os olhos diante de Adelaide e a deusa hesperídea,
áurea, averbou-se em busca de um telefone no aeroporto. Eis o primeiro impulso
diante da ressurreição: dizer aos filhos que mamãe está viva. E papai? E nós?
De que servíamos nós? E todo aquele pânico? A imprensa nos recebia no saguão do
aeroporto. No dia seguinte porejavam notícias do poeta redivivo. Tudo era
imortalidade em mim. Por
que não contigo? O que mais esperavas? Não resisti a chutar o cinismo
escancarado da moringa. Não bebi uma gota sequer da maldita água. Bem sei
quantas vezes fui tratado como o poeta da moringa entre falsos amigos. Tudo ali
naquela desarrazoada tarde.)
- Chega. Vê como ele se livra rapidamente das
responsabilidades? Meu irmão traçou um círculo a seu redor. Percorre-lhe o
dentro e o fora, irresponsável, fraudando um discurso, mesmo ciente de que o
êxtase que supõe é a falência das duas partes. Busca um terraço no céu, uma
laje fantástica que o proteja do engano de si mesmo.
- O que foi feito dela?
- Adelaide foi levada a achar que o piano era
nada. Desconhecia-se. Veio me visitar uma tarde. “Estou sentindo uma forma me
apertando, pedindo que eu a deixe de lado.” Me chamava de Fredo. Estava tão
linda. Tomada de angústia, mas tão linda. Disse-lhe: “Jamais esqueço a noite em
que tocavas em tua casa a Chansons d’amour de Grieg”. Sorriu com pesada
lentidão, mas ainda assim envolvente. Não sei por que não a beijei. Morreu logo
depois. Tanta infelicidade lhe despertara um câncer.
Ele estava certo. Parece que despertamos nossa
morte. Ou somos estúpidos o suficiente para nos sentirmos imortais e
desprezarmos a vida.
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