quarta-feira, 15 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo II | Parte 9




II - CÉUS REMOTOS


9

− As idades se misturam na memória. Não havia propriamente a ideia de uma novela. Quando tudo é memória, nada mais é memória. Memória, memória, memória. O homem é a única catarse possível. Afeiçoa-se a destilar a compreensão de si mesmo: um pai velho entregue à solidão, irmãos desamparados, os filhos distantes.
Alfredo Aquilino mantinha os olhos fixos no teto enquanto falava com vagar cada palavra.
− Impressionava-me que trouxesse tudo aquilo de memória. A cunhada havia ido embora, levando consigo toda a mobília da casa, talheres, quadros, piano, mesas, o cão, tudo, tudo mesmo. Renunciara apenas aos livros do marido, às imensas prateleiras carregadas de livros. Aquele santuário certamente significava o centro da ruína de seu casamento. A renúncia era a afirmação de um desprezo. E para que não morresse de sede o poeta, deixara também uma moringa d’água. Alfredo imaginava o monólogo que certamente teceria o irmão, tão logo os olhos se amoldassem ao vazio do cenário.
(- Como disfarçar vergonha extrema? Como evitar que saibam o que houve os filhos e irmãos e amigos? Como me sentir amanhã tendo os alunos diante? E com tantos, o que fazer, com os que me espreitam cada partícula de vida e sonham rindo com minha queda? Por que terá ela feito isto, em meio a tantos anos de apaziguado casamento? Não tocava a sós aquele piano melodramático? Amigas emplumadas e ridículas, acaso não tinha as suas? E não cuidava dos horrorosos canapés de tantas e tantas e repetitivas festas, nas previsíveis e lastimáveis datas, todas? Vivia, isto sim, a abusar de adjetivos. Como achar então que tudo em nossa vida era seu, exceto os livros e aquela afrontosa moringa? A quem confessarei minha dor? Como Adelaide poderia pensar que tudo o que eu sentiria diante do vazio seria sede? Como entupir-se de tanta mordacidade?)
Seguia olhando para o teto, encarando um invisível monstro dependurado sobre nós. A voz encarnava a do irmão, em um ritual desconcertante.
(- Os filhos decerto apoiarão a mãe. Dirão impiedosos de minha permanente ausência. Também eles a pensar que livros e livros e uma moringa d’água são alimentos suficientes para um poeta. Criamos filhos para tanto? Para afinal julgarem o pai e não simplesmente apoiá-lo? Já sei que minhas irmãs dirão que negligenciei o casamento. E isto dirão justo aquelas que jamais casaram. Os amigos mais cruéis serão os cercados de adoráveis concubinas. Já lhes ouço os risos cortantes. Da moringa bem imagino o quê. E o que levas de tudo isto, minha confusa Adelaide? Talvez tenha guardado, confesso, as melhores exclamações para meus versos. Mas todos traziam teu sabor inconfundível. O que mais poderias querer? Não fui teu grande cantor? O que são as musas? É tão pouco assim o que te dei e que agora trocas por nada? A conta bancária, os móveis, a cumplicidade dos filhos, pensas mesmo que tudo define tua vida e anula a minha? Talvez o Rembrandt legítimo em sua ronda noturna. Mas não lhe repetirei a miserável vida nos últimos anos. Não procurarei mulheres entre músicos ou qualquer outro tipo de círculo de vagabundos. Farás isto, tenho certeza. Os filhos ficarão contigo, embora já bem crescidos os falastrões. Tão-somente sentirei imperturbável saudade daquele sábio exercício de iluminação de uma cena: o raro Rembrandt que tínhamos na parede da sala. Pensas que te foste com toda a luz? Que tonta, Adelaide, o que te passou pela cabeça? Que eu não poderia viver sem ti?)
Enquanto falava, por vezes tendia a transtornar-se. Abria um disperso sorriso. Suspirava um tanto, logo recuperando a própria voz.
- Certamente um dia transformará tudo aquilo em um de seus indefectíveis poemas. Já imagino a vazante pouco gustativa das imagens. Pobre poeta, meu irmão. E agora um trapo, uma cárie, um esgoto entupido, abandonado pela esposa. Esquece que fez tanto por essas metáforas extenuadas…
Em um outro dia, mostrou-me as páginas arrancadas de um caderno, a letra trêmula, garranchosa. Pediu-me que lesse em voz alta.
(Chego da aula e encontro a casa completamente vazia. Assusto-me. Penso em assalto. A todo instante se rouba. Decerto sou parte disto. Entro na biblioteca e ali estão livros, todos, mesmo os espalhados por um lado e outro, agora desajeitadamente acondicionados em algumas prateleiras. Em um dos cantos do cômodo, uma moringa dava sinal de que assalto não houvera. Imperava solitária e vítrea, em meio a nenhum outro móvel. Sequer o telefone. Como dar pelo havido e deslacrar tal enigma?)
- Quer o suco agora, meu irmão?
Balançava a mão, negativamente, agitado com a interrupção da irmã.
- Leia de novo. Não. Aquilo do telefone é uma graça. Ele não sabe passar sem um telefone. O dia só se justifica quando liga para alguém e diz: “ouça que estou fazendo o dia”. Idiota. Deveria dizer, quando muito: “ouça o que estou fazendo do dia”. Continua dali.
(Ligar para os filhos a indagar o quê? Enquanto isto, que vinho tomar, que tango ouvir, em que poltrona aquietar-me? Dar pela falta dos tecidos imutáveis de que é feita cada vida leva o mesmo imprevisível tempo que fiá-la. Aos poucos algumas aflições foram golpeando a tez da realidade, em decursivo rondel: quem me faria os hábitos da mesa? Quantas cartas teriam hoje chegado? Os versos de fim de noite, onde os comporei? Amigos recriminam que tenho publicado livros demais. A caminho de casa, entretanto, ideias tantas me surgem sempre, e tantos poemas, tantos… Talvez seja um poeta de imagens demasiado simples, confesso. Hoje mesmo vinha pensando em uma ode ao homem imóvel na praia, vinha já com uns versos prontos: “esta manhã um homem estava imóvel na praia / com toda a vida salgada por silêncio e infortúnio”.)
- Alfredo, toma o suco…
- Merda, merda, merda… Ele vai exasperar-se e dizer que é um homem tão simples, um merda tão simples. Não pára de ler.
A avó não fazia ideia do ritual que estava interrompendo. Eu seguia lendo.
(Tenho sido um homem tão simples. Os poemas não passam disto: um reflexo de nossa simplicidade diante da vida. Os poetas somos todos a encarnação do puro Francisco. Nos desfazemos de tudo em um exercício diário, permanente. Nossa tragédia vem de nossa abnegação. Desejamos profundamente que todos os homens sejam felizes. E o desejamos com nossos versos. Por que então arriscaria algo contra meu amor? Com amor componho minhas odes e versos mínimos. Diante daquela moringa me sinto julgado por crimes sequer pensados. Não teria dado a Adelaide toda uma vida? A que devo minha lástima, irrefletida, desassossegada, entontecida? O que peço à minha memória que desvele sem trama? É certo que raramente a procurei como a uma mulher deveria seu homem procurar. É provável que desconhecesse muitas de suas sílabas, possivelmente as mais crepitantes, jamais por mim debulhadas. Mas era uma deusa a luniforme Adelaide. Apunha signo a signo. Podia escrevê-la com os cabelos em versos, as volutas intermitentes, os lábios tomados de seiva sugerida pelo hálito. Adelaide parecia benzer cada cadinho de espaço que seu espectro preenchia. Possuía diabólica santidade.)
- “Diabólica santidade…”. A mulher era insaciável, e a lubricidade desprezava qualquer sublimação retórica. Olha a tolice que ele vai dizer agora:
(Lembro do vinho com que me procurou certa noite para um banho. Estava tão embevecido de Verlaine. Sedução possível não havia mais. Toda a embriaguez do mundo estava ali, nos versos. Batia palmas para Verlaine e não me acendia Adelaide fogo algum. Talvez fosse o maldito piano que acreditava parte de si. Sim, sim, era o piano, não resta dúvida, a mínima. A todo instante cercava-me com uma sonata estilhada. Tantas histórias poderia contar, mistérios e dissabores essenciais, embaraços da paixão, viços de personagens que me inspiram, lembranças, não mais… E as insípidas sonatas acesas até altas horas. A poesia já trazia consigo toda música. Adelaide a desmerecia com aquela versalhada teclada.)
- E toda a parvoíce que benze com a água pútrida em nome da poesia? Reduz-se a nada. Não compreendeu jamais a coerência do ardor de Adelaide. Daquele corpo eu arrancaria toda a alma do mundo.
(Por que se perder em acordes tão frágeis? Era um absurdo, aquilo. Em algumas festas de família, as primas pedindo para ouvir o piano. Um Schubert mal dedilhado despertava atenção que um Valéry autêntico sequer suspeitaria. Jamais li meus poemas em tais festas. Entre a inúmera bebida e os indeclináveis canapés, todos preferiam as histórias alheias, e me pediam que contasse a trágica morte de Isadora ou detalhes do desengano de Padre Ramírez. Quem conta histórias não pode ter a sua própria narrada, exceto se a enovela no fio das demais.)
- O safado não entende que ganho é conquista e não herança ou trapaça. Fala sempre em prêmio, subordinando tudo na vida a um mero reconhecimento da reles existência. Palhaço… Lê o resto.
(Vejo agora que não eras nada em minha vida. O que lamento então? Quando escapamos milagrosamente de um acidente aéreo, de retorno ao lar após larga viagem, tínhamos tão-somente um ao outro. Abri os olhos diante de Adelaide e a deusa hesperídea, áurea, averbou-se em busca de um telefone no aeroporto. Eis o primeiro impulso diante da ressurreição: dizer aos filhos que mamãe está viva. E papai? E nós? De que servíamos nós? E todo aquele pânico? A imprensa nos recebia no saguão do aeroporto. No dia seguinte porejavam notícias do poeta redivivo. Tudo era imortalidade em mim. Por que não contigo? O que mais esperavas? Não resisti a chutar o cinismo escancarado da moringa. Não bebi uma gota sequer da maldita água. Bem sei quantas vezes fui tratado como o poeta da moringa entre falsos amigos. Tudo ali naquela desarrazoada tarde.)
- Chega. Vê como ele se livra rapidamente das responsabilidades? Meu irmão traçou um círculo a seu redor. Percorre-lhe o dentro e o fora, irresponsável, fraudando um discurso, mesmo ciente de que o êxtase que supõe é a falência das duas partes. Busca um terraço no céu, uma laje fantástica que o proteja do engano de si mesmo.
- O que foi feito dela?
- Adelaide foi levada a achar que o piano era nada. Desconhecia-se. Veio me visitar uma tarde. “Estou sentindo uma forma me apertando, pedindo que eu a deixe de lado.” Me chamava de Fredo. Estava tão linda. Tomada de angústia, mas tão linda. Disse-lhe: “Jamais esqueço a noite em que tocavas em tua casa a Chansons d’amour de Grieg”. Sorriu com pesada lentidão, mas ainda assim envolvente. Não sei por que não a beijei. Morreu logo depois. Tanta infelicidade lhe despertara um câncer.
Ele estava certo. Parece que despertamos nossa morte. Ou somos estúpidos o suficiente para nos sentirmos imortais e desprezarmos a vida.




Visite a nossa loja




Nenhum comentário:

Postar um comentário