quinta-feira, 16 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo III | Parte 16



III - MARGEM IMPERTURBÁVEL DO SILÊNCIO


16

- Mãezinha, me prende de novo em teu corpo.
Um riso comum chacoalhava a manhã.
- Tu não presta, Pequeno safado.
- Eu fico bem quieto. Não mexo um nervo.
- E o que tens mais?
Ria e agitava-se, fugidia, cavilosa.
- Vem deitar aqui.
Ajeitava o menino no centro de seu quarto.
- Tens que me prometer ficar bem quieto, sem um sinal de vida antes que eu diga.
Salpicando ansiedade, inerte e despido de qualquer fragor, gesticula a concordância com um mínimo esgar facial.
- Aqui vou eu. Que nada te escape, meu lindo.
Pousava o desenleio com maciez e precisão, descendo meticulosa, enrediça, uma lúbrica escuridão se desenhando, litúrgica, sobre o rosto felicitado de Pequeno Ansioso, já quase todo ladeado pelo acetinado toldo daquele mágico anfiteatro em que se constituía o vestido de Mãe Dolores, caindo, caindo, preparando a coerciva tela, os passos da trama, as falas silenciosas, fragrante murmúrio de cada movimento, a ordem confusa de tanto contentamento, lábios se tocando já sem nenhum pudor, oferenda conclamada, o menino por beijar aquele precipício de carnes, aguardando um sinal, corpo rijo, vítima esperando ser santificada.
- “Ajeita contigo todas as formas de ver. Não deixa que nada te sufoque. Qualquer desafio condena o homem à morte. Risco é condenação. Não se pode simplesmente abandonar um sofrimento. O que pensas estar à mão é sempre o inacessível, a ocultação de uma potência, o êxtase em que radica toda prosaica existência.”
Pequeno Ansioso seguia ouvindo a ladainha algo impostora, minguando sob o vislumbre da desordem encantada, o sexo absurdo derramado no rosto, colado a seus lábios, pináculo que súbito despencava daquela iluminativa bestialidade, descria no sentido incerto de cada coisa, porém algo mais íntimo lhe impedia a reação. E assim como florescera o desejo recolhe-se agora a charada. Lentamente ergue-se aquele toldo delirante, sem que se tenha escrito uma única frase de gozo ou deleite. Os olhos esbugalhados do menino procuravam alguma resposta. A ludibriante mulher refazia-se da arborescente condição, embruxando os eufemismos, ainda com um livro na mão, de onde certamente pescara aquelas aves de limo, meneios da retórica, Mãe Dolores, que ler não sabia, sábia de ecos e da clara inocência bem dormida.
- O que esperavas? A hóstia consagrada?
Riam-se, quase com demência.




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