quarta-feira, 15 de abril de 2015

SOBRAS DE DEUS | Capítulo II | Parte 8


II - CÉUS REMOTOS

8

- Preste atenção, preste atenção! “Uma vez torturada por teu amor / terás que te refazer a partir dele.” Apenas ouça. Tem algo surgindo aí. Meu irmão quer me deixar sem isto. Ele entrecorta minha vida. Tenho uns versos, me surgem, surgem… surgem. Vou escrevendo, anotando aqui comigo. E… Não, não vou escrevendo tanto. Vou escrevendo na memória. Meu irmão não encontra tempo para lê-los. Diz: “vamos ver se há aí algum fundamento poético”. Sempre foi um burocrata do verso. Claro, o poeta da família não poderia ser outra coisa. A busca desenfreada de essencialidade é um distúrbio patológico. A imagem poética surpreende pelo que oculta em si, pelo que apenas sugere. Toda beleza é perversa.
Assim me recebeu tio Alfredo, logo na porta da casa da avó, na semana seguinte. Sempre me deixava algo perplexo diante de tantas observações. Por vezes atropelava o próprio pensamento. Senti-me obrigado a retomar a estranheza com que fatiamos a posta anterior de nossa conversa.
- Gostei dos livros. Só me veio uma curiosidade: não são apenas estes os teus livros lidos. É só isto aqui? Tua vida, é só isto?
- Bem poderia ser. Não somos exatamente o que lemos, mas antes, antes mesmo, a maneira como o lemos. Que livros querias? Como os restos da biblioteca de meu irmão. Por que não falo em nomes? Porque não leio nomes. Sei de um Claudel - o burocrata cretino que pôs a própria irmã em um manicômio -; de uns versos mal escritos, porém dilacerantes, de um Artaud; da soma de tudo que soube ser Baudelaire. Notícias tão vagas, sempre tão excessivas, deslumbradas. Leio os versos que estão ali. E duvido comigo mesmo se é preciso ler algum verso. Se versos não têm tanta importância, o que dizer então de seus autores? Meu irmão é que vive de versos e de nomes e de escolas. Só leio versos roubados, da livraria ali da praça ou da biblioteca de Anselmo.
Alfredo Aquilino destrinçava o ocioso e o desconhecido em minha vida. Tudo em mim irrompia fuçando dúvidas, desconfianças, um pesponto de inquietude, desperta justamente pela interlocução delineada. Na verdade, não sei se me ouvia, porém me deixava ouvi-lo. E isto para mim já era uma forma primogênita do diálogo.
- Não aguentava mais a clausura naquele quarto. Pedi a Firmina uma revista, qualquer uma. Não podia seguir olhando para o teto o dia inteiro. O teto tem um momento propício a ser observado. Depois começa a produzir monstros à revelia. É quando então desaba sobre nós. Firmina talvez fosse alheia à queda de tetos. Tentei conversar com ela. Estávamos ali pela mesma razão, o doente e a enfermeira. Hipótese mais risível não a encontraríamos tão fácil. Desleixado com a higiene, Firmina vinha cuidar de mim como uma deusa reparadora.
- Olha o teto, vai cair.
- Que teto, seu doido?
- As pontas metálicas e persistentes da tesoura de unhas me convenceram de que a coitada poderia facilmente ser convertida em uma porta de saída. Queria apenas fugir. Espero que a tonta, tão adorável Firmina, não leve em conta senão o requisito da tesoura cravada na garganta.
Não tínhamos encontros propriamente habituais. A princípio vinha com mínima frequência: umas manhãs de quarta-feira, uns dias saltados, até que foi se chegando, com o pouco cabelo colado à cabeça, a mão esquerda sempre mantendo o talho, a justa separação dos fios. Tio Alfredo era julgado mais e mais como intratável pela família. Certas doenças dispensam tratamento médico. São ajuizadas à luz da moral familiar. A condenação é sempre a mesma: irrestrita solidão. Não sei se ele escrevia os próprios versos, se os roubava do irmão ou de outros poetas que lia. De uma coisa sempre estive certo: aquelas ideias expressavam uma agonia pessoal.



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