- Preste atenção, preste
atenção! “Uma vez torturada por teu amor / terás que te refazer a partir dele.”
Apenas ouça. Tem algo surgindo aí. Meu irmão quer me deixar sem isto. Ele
entrecorta minha vida. Tenho uns versos, me surgem, surgem… surgem. Vou
escrevendo, anotando aqui comigo. E… Não, não vou escrevendo tanto. Vou
escrevendo na memória. Meu irmão não encontra tempo para lê-los. Diz: “vamos
ver se há aí algum fundamento poético”. Sempre foi um burocrata do verso.
Claro, o poeta da família não poderia ser outra coisa. A busca desenfreada de
essencialidade é um distúrbio patológico. A imagem poética surpreende pelo que
oculta em si, pelo que apenas sugere. Toda beleza é perversa.
Assim me recebeu tio Alfredo, logo na porta da casa da avó,
na semana seguinte. Sempre me deixava algo perplexo diante de tantas
observações. Por vezes atropelava o próprio pensamento. Senti-me obrigado a
retomar a estranheza com que fatiamos a posta anterior de nossa conversa.
- Gostei dos livros. Só me veio uma curiosidade: não são
apenas estes os teus livros lidos. É só isto aqui? Tua vida, é só isto?
- Bem poderia ser. Não somos exatamente o que lemos, mas
antes, antes mesmo, a maneira como o lemos. Que livros querias? Como os restos
da biblioteca de meu irmão. Por que não falo em nomes? Porque não leio nomes.
Sei de um Claudel - o burocrata cretino que pôs a própria irmã em um manicômio
-; de uns versos mal escritos, porém dilacerantes, de um Artaud; da soma de
tudo que soube ser Baudelaire. Notícias tão vagas, sempre tão excessivas,
deslumbradas. Leio os versos que estão ali. E duvido comigo mesmo se é preciso
ler algum verso. Se versos não têm tanta importância, o que dizer então de seus
autores? Meu irmão é que vive de versos e de nomes e de escolas. Só leio versos
roubados, da livraria ali da praça ou da biblioteca de Anselmo.
Alfredo Aquilino destrinçava o ocioso e o desconhecido em
minha vida. Tudo em mim irrompia fuçando dúvidas, desconfianças, um pesponto de
inquietude, desperta justamente pela interlocução delineada. Na verdade, não
sei se me ouvia, porém me deixava ouvi-lo. E isto para mim já era uma forma
primogênita do diálogo.
- Não aguentava mais a clausura naquele quarto. Pedi a
Firmina uma revista, qualquer uma. Não podia seguir olhando para o teto o dia
inteiro. O teto tem um momento propício a ser observado. Depois começa a
produzir monstros à revelia. É quando então desaba sobre nós. Firmina talvez
fosse alheia à queda de tetos. Tentei conversar com ela. Estávamos ali pela
mesma razão, o doente e a enfermeira. Hipótese mais risível não a
encontraríamos tão fácil. Desleixado com a higiene, Firmina vinha cuidar de mim
como uma deusa reparadora.
- Olha o teto, vai cair.
-
Que teto, seu doido?
- As pontas metálicas e persistentes da tesoura de unhas me
convenceram de que a coitada poderia facilmente ser convertida em uma porta de
saída. Queria apenas fugir. Espero que a tonta, tão adorável Firmina, não leve
em conta senão o requisito da tesoura cravada na garganta.
Não tínhamos encontros propriamente habituais. A princípio
vinha com mínima frequência: umas manhãs de quarta-feira, uns dias saltados,
até que foi se chegando, com o pouco cabelo colado à cabeça, a mão esquerda
sempre mantendo o talho, a justa separação dos fios. Tio Alfredo era julgado
mais e mais como intratável pela família. Certas doenças dispensam tratamento
médico. São ajuizadas à luz da moral familiar. A condenação é sempre a mesma:
irrestrita solidão. Não sei se ele escrevia os próprios versos, se os roubava
do irmão ou de outros poetas que lia. De uma coisa sempre estive certo: aquelas
ideias expressavam uma agonia pessoal.
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